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André Gonçalves Fernandes
Coluna "Lanterna na Proa"

O que o dinheiro não compra

André Gonçalves Fernandes

Não faz muitos anos que uma conhecida operadora de cartão de crédito dizia, em seu comercial, que havia coisas na vida que não tinham preço, mas, para todas as outras, existia o cartão de crédito dela (embora o da concorrente fosse tão bom quanto)...

De lá para cá, ao que parece, o cenário mudou: pode-se ganhar muito dinheiro perdendo peso em desafio televisivo; participando de programa de exposição coletiva da intimidade alheia; vendendo o direito de lançar toneladas métricas de gás carbônico na atmosfera; “terceirizando” a gestação na barriga alheia e, como o céu é o limite, é possível ficar rica (lamento: só para mulheres) leiloando a própria virgindade...

Vivemos numa época em que quase tudo pode ser comprado ou vendido. O deus mercado e “sua mão invisível” passaram a governar nossa vida como nunca. Com o fim da guerra fria, ele assumiu um prestígio sem precedente, boa parte dele decorrente do fato de que nenhum outro mecanismo de organização e produção de bens tinha se mostrado tão eficaz na prosperidade material da maioria dos povos e nações.

Mas não nos demos conta de que, na medida em que esse deus alcançava domínios cada vez maiores, seus valores – estritamente econômicos – começavam a desempenhar um protagonismo cada vez maior não só no mundo das trocas de bens materiais. Mas para além dele. E não demoraram a adentrar na vida social. Nos dias atuais, a lógica do mercado não dá as cartas somente para o regime de oferta e de demanda de bens materiais: conduz crescentemente a vida como um todo.

Boa parte da crítica a respeito da última crise financeira limitou-se a apontar a falha moral do triunfalismo do mercado à ganância dos investidores, que os levou a assumir um grau de risco irresponsável. E, como é curial, a reprovação moral veio entoada pelo coro dos desocupados de plantão, dos intelectuais engajados e dos desajustados ideológicos, em mais um capítulo da série “muito barulho por muito pouco”.

Por muito pouco mesmo, porque o grau ensurdecedor da crítica tornou o diagnóstico superficial: se a ganância teve sua parcela de culpa na crise, a maior mudança no perfil do mercado não foi o aumento estratosférico da ganância de seus agentes, mas a extensão do mercado e de seus valores para esferas da vida com as quais não guarda qualquer relação natural, como no caso da virgindade, que costumava ser perdida privadamente e não leiloada mundialmente...

Quando o pensamento e as regras do mercado assumem tal proporção na vida social, esta fica privada de um fundo moral. O mercado não costuma julgar as preferências de quem atende. Pouco lhe interessa se uma certa forma de avaliar um bem é preferível a outra. Se alguém estiver disposto a pagar por sexo, vender um rim no mercado negro de órgãos ou alugar sua participação numa passeata qualquer e, do outro lado, existir um adulto disposto a negociar, a primeira pergunta será: “Quanto é?”

Para vencer esse quadro, contornar a ganância é o menor dos problemas. Devemos, antes, repensar o papel que o mercado deve desempenhar em nossa sociedade. E, se for necessário, devolvê-lo para seu devido lugar. Para esse debate contemporâneo, precisamos analisar os limites morais do mercado, perguntar se existem certas coisas que o dinheiro não pode comprar e, ao fim, se for o caso, concluir que, para todas as outras, ainda existe o cartão de crédito da dita operadora...

Nossa época – a era do pensamento mercadológico – fala muito de economia e esbanja possibilidades inovadoras. Realmente. Economiza no debate dos limites morais do mercado e esbanja inovação ao faltar com critérios na escolha daquilo que pode ser comprado ou vendido. Com respeito à divergência, é o que penso.

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ANDRE GONÇALVES FERNANDES, Post-Ph.D. Juiz de Direito e Professor-Pesquisador. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre, Doutor e Pós-Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito, titular de entrância final em matéria cível e familiar, com ingresso na carreira aos 23 anos de idade. Pesquisador do grupo PAIDEIA-UNICAMP (linha: ética, política e educação). Professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU Escola de Direito. Coordenador Acadêmico do Instituto de Formação e Educação (IFE). Juiz instrutor/formador da Escola Paulista da Magistratura (EPM). Colunista do Correio Popular de Campinas. Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB. Coordenador Estadual (São Paulo - Interior) da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Membro do Comitê Científico do CCFT Working Group, da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas e da Academia Iberoamericana de Derecho de la Familia y de las Personas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Conferencista e autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Membro Honorário da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Titular da cadeira nº30 da Academia Campinense de Letras.

E-mail: agfernandes@tjsp.jus.br

Publicado no Portal da Família em 04/06/2013

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