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Sueli Caramello Uliano

Coluna "A prosa heróica de cada dia"

Primeiros passos, primeiras palavras, primeiras letras

Sueli Caramello Uliano

Achei muito curioso quando vi a minha filha, ainda bebê, engatinhando ao lado de um amiguinho da mesma idade. Ela seguia toda delicada, enquanto ele atropelava tudo o que viesse pela frente. O menino arremessava-se com sofreguidão, enquanto a minha pequena gastava-se mais em rir e deslizava, num suave rebolado, feliz por ter companhia no corredor acarpetado do apartamento. A mãe do pequeno também comentou: “Como são diferentes, já desde a fase das fraldas! Olha só o jeitinho dela!”.

Engatinhar e tentar levantar-se foram fases quase indistintas. Inúmeros tombos até que ela começou a firmar-se bem de cócoras e, mesmo sem apoiar-se em nada, tentava endireitar o corpo, para assumir a posição do caminhar humano. No início, fraquejava e voltava a agachar-se para readquirir o equilíbrio. E assim, um passinho, uma agachadinha, outro passinho... As mãos espalmadas, os braços abertos. Era possível vencer o espaço sem arrastar-se. A expressão de vitória acendia-lhe o rosto, mas era um desafio cheio de apreensões, temores: da cadeira até o sofá, do sofá até o batente da porta do quarto... Quando se aproximava de mim, agarrava-se à minha mão ou à minha roupa, triunfante, mas eu não passava de mais um apoio de que ela se livrava rapidamente, decidida a prosseguir. Embora já ficasse em pé, segura da minha mão, aos 7 meses, soltou-se para andar na semana em que completou um ano.

Aos cinco meses, nos braços do pai e olhando-o de frente no rosto, repetiu cadenciadamente: “pa... pa”. Alguém consegue imaginar a expressão dele e a cor que lhe tomou as faces? “Você ouviu?” Ouviu? Ele desconcertava-se. Minimizei: “Ela já está ensaiando alguns sons...” Mas que tinha sido especial, ah! tinha, sim!

Meses depois, já então ensaiando a vontade própria no embate com a vontade do pai, da mãe e dos avós, “qué” será a sua sílaba preferida. E criança pequena, quando “qué”, “qué”, mesmo. Grita que “qué”, Chora que “qué”. O vocabulário restrito impõe-se com uma força de expressão inigualável. E a gente fica atarantada com a ausência do complemento: “O que você qué?... Ai, meu Deus!”

“Qué ága” (essa é fácil, não é?). “Qué tetê” (também é fácil). “Qué pô” (para pedir pêssego). “Qué biá” (nesse caso, melancia). “Qué papol” (procurando o guardanapo de papel, que lindinha!). Num belo dia, à mesa, voltou-se para o pai: “Qué letepoco”. Ele procurou concentrar-se e passou os olhos por tudo o que havia sobre a mesa. “Qué letepoco” – ela repetia, já impaciente. Ele começou a ficar vermelho e, frustrado, desabafou: “Eu não entendo o que ela quer...” E eu, que estava junto à pia, o socorri: “Leite no copo. Ela quer imitar você.”

Mas não se enganem. O pai sempre tentava dialogar com ela. Quando estávamos no carro, ela na cadeirinha no banco de trás, ele começava: “Onde tá o piu piu, Mi? Ela respondia enfática: “Vuô”. E ele variava: “Onde tá a pipa?” E ela: “Vuô”. Naquele dia, a viagem era mais longa, o diálogo foi repetido três, quatro vezes... Até que a resposta dela veio mais enfática: “VuuuôôÔ!” Num autêntico “não aguento mais isso, pai”, que nos fez cair na gargalhada.

Outro diálogo marcante entre os dois acontecia na cozinha, de onde se podiam ver, pela janela, meus vizinhos de andar. O pai perguntava à pequena: “Onde está o Seu Paulo? Onde está a Dona Ivone?” Se estavam presentes, os dois faziam a maior festa e ela ficava toda feliz, mas isso era muito raro, de modo que a resposta habitual dela era “Num tá”. Naquele dia, o pai sugeriu que fossem brincar no quartinho de serviço ─ coisa que ela adorava fazer. Levando a menina ao colo, ele atravessou a cozinha, mas, antes que ele abrisse a boca, ela, na pressa por chegar ao destino, sacudiu os braços e a cabeça e disparou: “Num tá Palo, num tá Vone”.

“Qué bilidu” Quero ver quem adivinha essa! Fora do contexto, impossível, mas, diante da televisão, quando acabava o Glub Glub, programa de desenhos da TV Cultura, e a menina apontava: “Qué bilidu, mamãe!” ─ ficou fácil. Mas, de onde saiu isso? Por que bilidu? É simples. Se substituímos por biligu, e pronunciamos na sequência, conforme a musiquinha da apresentação, temos: biligu biligu biligu. Agora, acelerando: bligu bligu bligu. Pronto. É só fazer o corte na outra sílaba e já está: gubli, gubli, gubli... E, para completar, havia um desenho que era o seu preferido. Dizia: “Qué panheo”. Claro, Os Companheiros.

Mais adiante, já com um bom repertório vocabular, ela chegou da escolinha contando, como sempre, o que havia feito, as brincadeiras, os casos. Pelo meio dos relatos, o nome de uma amiguinha saía defeituoso: “Então, mamãe, a Barba...” Corrigi: “Barba, não, filha. É Bárbara.” E ela repetiu com cuidado “A Bárbara...” e seguimos na prosa. Dias depois, ela acariciava o rosto do pai e reprovava: “Pai, você não fez a bárbara... Eu vou te beijar ‘no’ óculos!”

Aos cinco anos, ela estava alfabetizada. Por isso, andava pela rua lendo tudo o que aparecia. No açougue, enquanto eu aguardava, ela ia decifrando a lista dos cortes com os respectivos preços. De repente, puxou-me pelo braço:

─ Cupim?

─ É o nome de uma carne, filha.

Instantes depois:

─ Fral - dinha? Aqui tem fraldinha?

─ Não! É um tipo de carne.

Dali a pouco, meio assustada:

─ La - garto?

─ É engraçado, filha, mas são os nomes dos cortes...

─ Per - ni... pernilongo?

─ Epa! Pernilongo, não! Ah, filha, está abreviado e amontoado; é pernil c/osso... Pernil com osso! Ah! Ah! Você leu metade e adivinhou o resto...

Claro está que esses relatos seriam intermináveis. Limitei-me a ilustrar o que me propus no título, até mesmo por razões de espaço. Convido, no entanto, pais, mães e avós a relembrarem esses momentos com os jovens, quem sabe no Dia das Crianças, e desfrutar. Ah! Como é divertido ter criança em casa!

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Sueli Caramello Uliano , mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela Universidade de São Paulo, Presidente do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para assuntos de adolescência e educação.

É autora do livro Por um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais.

e-mail: scaramellu@terra.com.br

Publicado no Portal da Família em 08/10/2013

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