logotipo Portal da Familia

Portal da Família
Início Família Pais Filhos Avós Cidadania
Vídeos Painel Notícias Links Vida Colunistas
 

A VELHA, OS GATOS E O MENINO

Por que não sair da própria toca e... reaprender/ensinar a rezar?

Cristina Moraes Vojvodic


Todas as crianças da rua tinham medo da velha e da sua casa. Diziam que ela era meio doida e, a julgar por sua aparência, muito certa da cabeça não devia ser mesmo. O cabelo branco era arrepiado, opaco. Opacos também eram os olhos, esgazeados, irrequietos. De sua voz, só se ouviam roucos grunhidos de indignação, quando algum menino atropelava seus canteiros, ao encalço de alguma bola perdida. Mas se alguém quisesse ouvir seus gritos, estridentes e furiosos, havia uma maneira infalível. Bastava jogar, ou fingir que jogava, uma pedra nos gatos. E quantos gatos havia! De cada canto surgia sempre algum, ou talvez uma mãe com uma ninhada. Seriam vinte? Trinta, quem sabe? Alguém uma vez disse ter contado cinqüenta. Exagero, decerto.

Eram todos gatos comuns, sem raça definida, vindos da rua. A velha adotava-os, dava-lhes nomes e comida, muita comida. Qualquer magricela e arisco recém-chegado logo se transformava em bem alimentado felino, arrogante em seu domínio territorial.

Sendo só e vivendo de uma magra pensão, é de imaginar que a mulher gastasse mais com os gatos que consigo própria.

Pedro era, indiscutivelmente, o chefe dos meninos daquela rua. Nunca brigara pelo título. Aliás, nunca o requerera. A ele e aos outros sempre parecera natural que a sua opinião prevalecesse, que as brincadeiras que propunha soassem muito mais interessantes que qualquer outra. Ele apenas sorria e convencia. Até mesmo os adultos eram sensíveis ao seu ar brejeiro, à sua amizade, ofertada logo ao primeiro olhar.

Travesso ele era. E muito. Surpreendia a todos com a sua incrível engenhosidade em criar "artes". Não havia muro que não pudesse ser escalado, papel que não virasse pipa, caixote que não se tornasse carrinho. Ou escudo. Ou espada. Ou martelo.

O choque foi violento, cinematográfico. Pedro, descendo a rua em seu carrinho de rolimãs. A velha, virando a esquina, de volta do açougue, uma sacola em cada mão, oscilando passo a passo, para lá e para cá. Em segundos, antes que pudessem perceber o que acontecia, estavam estatelados no chão. Do carrinho, nem sinal, perdendo-se quarteirão abaixo. As sacolas rompidas, a exibir gordurentas porções de carne.

— Deixa eu ajudar, tia.
— Não sou sua tia, moleque endiabrado. Olhe só minhas coisas todas espalhadas por aí. Por sua causa, peste.
— Desculpa, moça; deixa eu recolher.
— Não sou moça há muito tempo, "seu" atrevido. Vá recolhendo mesmo, que não faz mais que a obrigação. Quero ver é quem vai me recolher...; vai ver quebrei a perna.
— Eu ajudo, tia... madame.
— E eu lá tenho cara de madame, insolente! Fique firme deste lado que eu me apoio.
— Pode dar a mão que eu agüento, dona velha.

No esforço de se erguer, a mulher deixou passar o novo tratamento que recebera.

— Agora saia daqui e me deixe em paz.
— Não, dona. Eu vou levar a senhora até em casa.
— Você vai é atrapalhar. Largue meu braço e vá carregando o que sobrou das sacolas. Cuidado para não deixar cair de novo.

E lá se foram os dois. O menino a fazer malabarismos com os avariados embrulhos, falando sem parar. A mulher a resmungar, a se irritar com tamanha amolação. Será que ele não ia mais parar com essa tagarelice importuna?

À porta da casa ela tentou dispensar o falador, mas ele lhe pediu um copo de água.
Não se nega um copo de água a quem quer que seja. Bem que ela lhe disse que esperasse ali mesmo. Mas Pedrinho ainda falava; não prestou atenção e foi entrando atrás dela, sem a menor cerimônia.

A sala era escura, as cortinas cerradas; um certo cheiro de mofo a flutuar no ambiente.
— Espere aqui.

Desta vez ela falou bem alto. Impossível não ouvir. Ao ver-se sozinho, Pedro deu uma boa olhada à sua volta. Como bom avaliador, logo percebeu que a cristaleira, repleta de quinquilharias, era a única coisa que merecia exame mais aprofundado. E lá ficou ele, nariz grudado no vidro, até que a mulher voltou com a água.

— Dona velha, que é que é aquilo atrás do vaso azul?
— Figuras de um presépio.
— Presépio?! Posso ver? Eu acho lindo.
— Não. Está tudo muito empoeirado.
— Mas a senhora não vai ter que tirar logo para arrumar para o Natal?

Mais para se ver livre do insistente do que por vontade, ela abriu a portinhola e foi tirando as peças escurecidas, uma a uma; os olhos do menino, cada vez mais brilhantes. Na verdade, ela nem tocava naquelas coisas há muitos anos.

— Vamos limpar tudo? Eu lavo para a senhora.
— Isso não pode ser lavado. Vou pegar um pano para limpar.

Nem percebeu que a proposta, desta vez, partira dela, espontaneamente, talvez com saudades do tempo em que aquelas mesmas estatuetas deslumbravam seus olhos infantis.

Os bichinhos em atitude de plácida reverência, os pastores, rústicos, a adorar o Recém-Nascido. A estrela sempre posta no alto, indicando o local do pequeno estábulo. São José tinha uma expressão serena que só podia ser compreendida como um manto de proteção, docemente estendido sobre a Mãe e a Criança.

Nossa Senhora, tranqüila, pronta para servir e acarinhar o Menino, que por amor aos homens se tinha colocado em seus braços. Mas a tarefa, embora grandiosa, não lhe parecia pesada.
O Menino Jesus, então, era quase impossível de se olhar sem sentir os olhos inundados de lágrimas.

Tão pequenino, tão indefeso, tão poderoso! Aquela frágil e humilde criancinha era nada menos que o Filho de Deus, Deus ele mesmo, por sua própria vontade despojado de luxo e riqueza, nascido escondido. Por amor.

Agora estava ali, a falar sem parar, aquele menino também humilde, frágil. Por amor a ele o Outro viera. Para salvá-lo.

— Você sabe a história do Menino Jesus? - arriscou a mulher.
— Sei. Bom, mais ou menos... Eu gosto, mas não sei direito.
— Então, sente-se ali que vou lhe contar.
— A senhora está se sentindo mal, dona?
— Estou ótima. Sente-se logo, menino!
— Meu nome é Pedro.
— Sente-se, Pedro. Ou será que você não quer ouvir?
— Quero sim, dona.
— Letícia.
— Pode começar, dona Letícia, que já estou ouvindo.

Pouco a pouco, ela foi lembrando a forma como aprendera cada passagem e, com emoção, as foi desfiando, palavra a palavra, falando quase que consigo própria. Certeza de estar sendo ouvida, somente o silêncio e dois olhos atentos lhe davam.

Meia hora se passou, talvez uma. Pouco importava. Quando Pedro saiu, fechou a porta com a confiança de quem se sabe convidado a voltar.

Dona Letícia ainda resmungava (é difícil perder um hábito assim de repente):
— Esse menino! De onde foi tirar a idéia de que seus amigos vão querer vir aqui para ouvir histórias? Só para dar trabalho. Vou ter que procurar algum livro, se é que os cupins não os comeram todos. Esse Pedro... - um sorriso -, será que eles gostam de biscoitinhos de polvilho?

E os gatos? Miam mais agora, já não tão gordos, sua grande protetora quase esquecida deles.




Do livro "Retratos de Família", de Cristina Moraes Vojvodic, Editora Quadrante

 


 

 

Divulgue este artigo para outras famílias e amigos.

Inscreva-se no nosso Boletim Eletrônico e seja informado por email sobre as novidades do Portal
www.portaldafamilia.org


Publicidade