logotipo Portal da Familia

Portal da Família
Início Família Pais Filhos Avós Cidadania
Vídeos Painel Notícias Links Vida Colunistas
 

A moda é uma arte?

Ana Sánchez de la Nieta


A procura da beleza na moda faz com que o trabalho do desenhista se aproxime muito do trabalho do artista.

Como este, o costureiro precisa de elementos de inspiração para criar, para confeccionar as suas coleções. Há alguns desenhistas que se inspiram numa determinada época histórica (daí os famosos revival que recuperam vestes do passado adaptando-as à atualidade), numa gama de cores, em determinados tecidos...

A moda é uma arte; alguns vestidos de alta costura não têm nada a invejar aos objetos de ourivesaria; no polo extremo, a semelhança entre o estilo grunge e a pintura hiper-realista é bastante evidente.

O mérito da moda como arte é que, com palavras do filósofo Manuel Fontán de Junco, "conseguiu estabelecer uma ponte entre a beleza e a vida. A moda é uma arte que se usa, que se leva para a rua; é uma arte de consumo a que todos têm acesso"[1]. E é fundamentalmente uma arte humana. Uma arte feita por e para o homem.

O desenhista não veste muros, nem enfeita varas, veste pessoas humanas com tudo o que isto implica. Por isso, a moda não é só uma realidade estética mas também ética. O desenhista não pode esquecer a dignidade da pessoa ao concretizar as suas criações. A roupa tem que servir para salientar essa dignidade; por isso têm sentido as críticas que se fazem a um tipo de moda que mostra a mulher como um objeto. Ultimamente as passarelas viram-se inundadas por uma moda extravagante que, apoiando-se nas transparências, decotes e linhas apertadas e hiper-ajustadas, desnudam a mulher mais do que a vestem. São muitos os que vêem neste tipo de moda uma retrocesso na conquista da igualdade. Algumas passarelas convertem de novo a mulher num objeto, num belo animal que se mostra para agradar.

Face ao proclamado ocaso do machismo, estas passarelas convertem-se em redutos nos quais se continua a considerar a mulher como um objeto sexual. Machismo que se manifesta também na diferença em vestir o homem e a mulher; no primeiro caso aposta-se na elegância e no bom gosto, no segundo na sensualidade. O desenhista veste o homem e despe a mulher, o que não deixa de ser um paradoxo numa sociedade que se presume de igualitária.

Enquanto alguns protestam energicamente contra esta forma de entender a moda, já que opinam que lesa a dignidade da pessoa - sobretudo da mulher -, outros alegam que o desnudo pode ser artístico, que pode transpirar beleza, que uma modelo semi-despida na passerelle não tem que ser necessariamente imoral. Que as transparências, as aberturas e os decotes são só meios de tornar mais patente a beleza da pessoa. Perante este dilema, surgem algumas perguntas: Qual é a apreciação verdadeira desta moda atual? Não se torna exagerado criticar estas tendências? Não serão estas críticas marcas de um puritanismo já ultrapassado? Existe uma ética no vestir? E uma ética do desnudo?

A ética do desnudo

O tema da nudez na moda, como nas restantes artes, não é simplesmente uma realidade a abordar sob o ponto de vista estético. Não se trata de avaliar se o desnudo é belo ou não. O corpo é algo intimamente ligado à pessoa humana: não podemos tratá-lo, portanto, como uma realidade objetiva separada do seu sentido mais amplo. O corpo é manifestação do indivíduo, da alma do homem, o corpo é uma parte, e muito importante, da própria pessoa.

Quando perguntamos como é certo ser humano, é freqüente que comecemos por descrever o seu corpo: se é alto ou baixo, loiro ou moreno, gordo ou magro. O resto das suas qualidades espirituais, a sua inteligência, modo de ser, caráter, etc., inserem-se nesse físico e inclusive algumas realidades, como o temperamento, vêm determinadas precisamente pelas características corporais. Compreende-se, portanto, que, sendo o corpo parte da pessoa, o seu tratamento estético não pode ser desvinculado da ética.

Além de ser parte do indivíduo, o corpo tem um significado profundo quanto à comunicação das pessoas. "O corpo humano, o desnudo do corpo humano em toda a verdade da sua masculinidade ou feminilidade, tem um significado de dom de pessoa a pessoa. O corpo desnudo está muito unido pela sua própria natureza ao sistema esponsal no qual, quando uma pessoa se dá, encontra a apropriada e adequada resposta a esse dom por parte da outra pessoa"[2]. Se reconhecemos este caráter de dom do corpo humano entenderemos bem o seu sentido interpessoal. O corpo revela-se como dom que, por sua vez, espera a resposta de uma doação. É um dom que recebe. É também a fonte de uma rica comunicação interpessoal. Com os olhos, os gestos, as mãos ou as palavras comunicamos; mas esta comunicação atinge o seu cume quando é o corpo em toda a sua nudez o que se mostra. É a pessoa quem, através do seu corpo, escolhe dar-se, entregar-se a outra pessoa que, consciente do dom, decide responder de igual forma, entregando-se.

Nesta comunicação é, portanto, o corpo o elemento por meio do qual se entrega a totalidade da pessoa. Por isso, quando o corpo sai desta esfera pessoal a que pertence e se converte em propriedade pública corre-se o risco de que perca a sua dignidade.

Mesmo no tema da arte, o fato de que o corpo humano se converta em objeto de consumo põe interrogações éticas. Já que, ao reproduzir-se o corpo humano ou ao mostrar-se ao público, o elemento de dom pessoal fica ameaçado, no sentido de que pode converter-se em matéria de abuso. Já não é um corpo que se entrega como dom a outra pessoa que se dá em reciprocidade; nestes casos, o receptor é desconhecido, anônimo e a resposta inexistente ou imprevista.

Todo o artista tem que encarar todas estas interrogações éticas ao tratar o corpo humano; também o desenhista, da mesma forma que os restantes artistas, tem que considerar a verdade do homem e a nudez da pessoa para respeitar certos limites éticos. Quando eu mostro uma modelo seminua numa passarela estou fazendo com que essa pessoa ofereça o seu corpo como dom de que muitos se apropriarão (ainda que não seja de uma forma material). É negar a evidência rejeitar isto quando observamos a reação de alguns indivíduos perante um vestido transparente.

No entanto, podia-se objetar que a ética não está naquele que desenha, mas naquele que olha. Eu posso assistir a uma passagem numa passarela e contemplar esteticamente os corpos dos modelos ou posso apropriar-me deles e mesmo abusar com a minha imaginação. Isto é certo, mas só em parte. Teríamos que distinguir o "olhar para desejar" do simples olhar estético.

Todos temos a experiência de que é difícil conservar o olhar estético diante de um corpo, especialmente quando o corpo observado é de outro sexo, precisamente pelo que disse antes: um corpo não é uma realidade objetiva em si, senão que leva impresso o sentido da doação. Não sentimos o mesmo ao contemplar uma paisagem, já que o corpo humano tem um significado mais profundo que a paisagem. De toda a maneira, esta visão do corpo é diferente conforme as artes; na pintura e na escultura o homem corpo é um modelo que se transforma, se transfigura devido a um conjunto de técnicas. No cinema, na fotografia ou na própria moda, o homem corpo mostra-se como é: não é um modelo que se reflete mas um objeto que se reproduz. Por isso é mais difícil conservar o olhar estético ante uma fotografia, ou um modelo seminu, que ante uma escultura. De fato, os comentários mais ou menos soezes que se podem ouvir ante um cartaz publicitário de um filme sensual é raro ouvirem-se contemplando a Vênus de Milo.

Para além destas considerações, o fato de desnudar-se ou descobrir determinadas partes do corpo, vai contra a natureza do vestuário e, sobretudo, da própria pessoa: porque uma das funções do traje é precisamente cobrir a minha intimidade. Eu oculto algo exterior a mim, o meu corpo, e dou a entender que, com isto, estou a ocultar o que em mim há de mistério: a minha intimidade. Quando mostro o meu corpo estou mostrando muitas parcelas da minha intimidade. Como dizia o filósofo Ricardo Yepes " o homem veste-se para proteger a sua indigência corporal do meio exterior mas também o faz porque o seu corpo faz parte da sua intimidade e não está disponível para qualquer, assim como assim (...). O nudismo não é natural porque não é natural renunciar à intimidade"[3].

Há uma relação entre a intimidade pessoal e corporal. "As duas vão a par, porque a pessoa é corpo e espírito. (...) Como a pessoa é indissociavelmente corporal, para criar um espaço de intimidade espiritual, de riqueza interior pessoal, tem de se criar um âmbito de intimidade corporal"[4].

Por isso, uma das fórmulas para conseguir que uma pessoa destrua a sua dignidade é fazer com que perca a sua intimidade e, em primeiro lugar, a corporal. É o doloroso caso dos métodos utilizados nos campos de concentração onde se obrigava os prisioneiros a desnudar-se diante dos seus verdugos e dos restantes companheiros. O homem quando se desnuda diante dos outros deixa-se ver, examinar no seu eu mais íntimo e coloca-se sem nenhuma defesa perante o mundo, perante os outros que podem ter uma ou outra reação.

Por isso, toda a pessoa para mostrar a intimidade do seu corpo tem que fazer violência sobre si mesma para destruir essa defesa que é o sentido do pudor que todos temos dentro de nós mesmos.

[1] Fontán de Junco, Manuel, Profundidades del diseño y permanencia de Ia moda. Departamento de estudos BBV Bilbau 1996, p. 34.
[2] João Paulo II, La redención del corazón. Ediciones Palabra, pp.239-245.
[3] Yepes Stork, Ricardo, Fundamentos de Antropologia. EUNSA, p. 81.
[4] Santamaría, Mikel Gotzon, Saber amar con el cuerpo (3a. edição). Ediciones Palabra, p. 91.

Ana Sánchez de la Nieta Hernández. Jornalista, colabora em diversos meios de comunicação sobre temas de juventude, universidade, moda e cinema.
Do livro A Moda - Entre a Ética e a Estética, DIEL, 2000.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Divulgue este artigo para outras famílias e amigos.

Inscreva-se no nosso Boletim Eletrônico e seja informado por email sobre as novidades do Portal
www.portaldafamilia.org


Publicidade