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Coluna "Por dentro da dança"
Entendendo a Dança 2

Eliana Caminada


"A máscara, em sua fantasia selvagem e exuberante, freqüentemente não parece algo sagrado ou espiritualmente elevado; ao contrário, sua deformação chega à beira do ridículo, sem esquecer, que a mistura de idéias intuitivas com outras simplesmente grotescas constitui-se numa característica das experiências do subconsciente".

Continuando nossa história, abordamos nesse artigo a análise da dança de acordo com os temas e tipos.

Infinitos são os temas abordados pela dança. Qualquer acontecimento, importante ou rotineiro, justifica a manifestação dançada. Para o homem primitivo os temas de dança eram, em sua essência, àqueles ligados à vida e à sobrevivência: força, luta, fertilidade, fecundidade, saúde, doença, etc.

Esses temas podem ser representados por três tipos de dança: abstrata, imagética ou mesclada de ambos os tipos.

As danças imagéticas, miméticas ou imitativas, resultam da observação do mundo exterior e da tentativa de imitá-lo. Extrovertida, patriarcal e sensorial, a dança com imagem se originou da idéia de que a imitação um gesto ou atitude gesto eram suficientes para incorporar um poder e torná-lo útil. De acordo com essa concepção, quando o homem que imitava os animais, por exemplo, além de se identificar com eles e incorporá-los, conseguia reconhecer sua importância para a sobrevivência de todos.

Todos os povos que caçam têm prazer em dançar. Algumas tribos acreditam, até hoje, possuir vínculos sangüíneos com bichos: os totens. Em geral, a dança animal é masculina, mas certos movimentos podem ter origem em impulsos femininos. A estilização gradual dos movimentos da dança animal destorceu a tal ponto a naturalidade, que a imitação, não mais reconhecível, tornou-se uma abstração.

Como exemplos de danças de imagem relacionamos:

  • Danças de fecundidade. Ligadas à agricultura, embora estiveram, de início, associadas às mulheres, só se desenvolveram nas culturas agrícolas quando o homem assumiu o trabalho no campo. Devem ser entendidas considerando que para mentes primitivas, o sexo não existia (e) associado a idéia de deleite dos sentidos, mas de algo vital para a perpetuação da espécie.
    São exemplos de danças de fecundidade, entre outras, as danças de brincadeira, de beijos, matrimoniais, de nudez, de iniciação, entre outras, com suas imitações de trovões, raios e vento e os acessórios considerados sexuais, como a flecha, a lança, etc.

 

  • Danças de galanteio. São encontradas no mundo todo, mas, pela sua criatividade se destacam as formas húngaras, alpinas e espanholas.
    A húngara deu origem à conhecida dança chamada "czardas". Liberdade e poesia se refletem no rosto do executante e quem a assiste sabe que jamais poderá ser reproduzida mecanicamente por uma caixinha de música, como é possível, por exemplo, com o minueto; a alpina, viva, livre e expandida, é dançada, principalmente, por bávaros meridionais, tiroleses e salzburgueses; as espanholas reproduzem o auge do galanteio. Dotadas de uma perfeição que sempre encanta, preenche, como nenhuma outra, talvez, a necessidade de emoção manifestada, tanto por quem executa, como por quem assiste. Sua origem remonta aos fenícios, em solo espanhol mesmo, provindo de uma herança de mais de 2000 anos. Fandango, jota, sevilhana, bolero, bulerias, alegrias, entre muitas outras, a Espanha é um paraíso para os que amam a dança.

 

  • Danças fúnebres. Para as culturas extrovertidas podiam significar uma trama da vida diante do poder da morte. Usando a máscara como importante acessório, essas danças imitavam os movimentos de um morto na tentativa de se apossar do seu espírito. Curiosamente, a dança fúnebre apresentava-se alegre quando, em rituais de casamento, era associada à idéia de ressurreição. Em 1674 se teve notícia dessa prática num rito religioso judeu realizado em Clèves; passando à Alemanha e à Boêmia deu origem ao motivo do conto infantil de "A Bela Adormecida" que, ao receber um beijo, ressuscita para a vida transformando uma mórbida cerimônia em animada celebração. O homem primitivo sempre associou as diversas estações da natureza à morte e à ressurreição e a arte sempre expressou essa crença.

 

  • Danças de armas miméticas. Como diz o nome são executadas com armas. Ao representar a dança em forma de luta vitoriosa onde se uniam a movimentação dançada e a ação da batalha, imaginava-se garantir o êxito da empreitada. As danças de habilidade podem ser consideradas danças de armas pela necessidade que tem o executante de possuir essa qualidade para evitar ferir ou ser ferido ao dançar. Com freqüência, uma movimentação erótica é associada à guerreira, assinalando a velha relação entre a luta e a amor sensual e seu caráter defensivo. O poeta, romancista, contista, ensaísta, crítico de arte, de literatura e de música Mário de Andrade (1893-1945), no volume I de suas "Danças Dramáticas do Brasil" menciona a dança de armas como o motivo essencial das nossas "Cheganças", tanto de marujos quanto de mouros, refletindo a herança luso-hispânica que integra nossa colonização.


A dança de imagem também pode ser criação do ser introvertido; esse dançarino pode sentir-se possuído pelo ser que está representando, embora sua concepção seja abstrata, ou seja, sem imagem. Essa dualidade introduz a forma intermediária que tende a materializar a abstração e a idealizar a figura.

A dança sem imagem, abstrata, apresenta formas ilimitadas. Buscando um êxtase que transcenda o estado físico o dançarino acaba por conseguir sair "fora de si" para participar do que acontece no seu próprio universo. Os temas, por mais variados e fortes que sejam, são considerados enquanto idéia pura, não intervindo, dessa maneira, na forma da dança.

As danças sem imagem podem ser:

  • Danças medicinais. No centro de um círculo, o dançarino-feiticeiro, em estado de êxtase visionário, sugeria ver o passado e o futuro, aumentando, em si mesmo, a sensação extática da comunidade e realizando sua aspiração de se ver diante de um ato sobrenatural.

 

  • Danças de fertilidade ou fecundidade. Também xamânicas, eram executadas pelo feiticeiro que tentava atrair forças da natureza imprescindíveis para o cultivo da terra. Ainda podemos ver essas danças em cerimônias de tribos indígenas ou de aborígenes. A célebre dança popular Maypole (Dança do pau de fita) é uma antiga dança de fertilidade dançada em maio. Na Europa ela simboliza o fim do inverno e o início da primavera e o ingênuo mastro era, originalmente, um símbolo fálico e pagão desses ritos. Proibido pela igreja do período elisabetano, faz parte da mais célebre criação de sir Frederick Ashton [1], "La fille mal gardée" [2], inspirado no original de Jean Dauberval datado de 1789. Universais, as danças de fertilidade ou fecundidade (o homem primitivo não dissociava uma coisa da outra) não são dançadas entre a semeadura e colheita, o que talvez explique sua proibição nesse período entre muitos povos primitivos e justifique, igualmente, a época em que tem lugar as temporadas de dança em grande parte do mundo.

 

  • Danças de iniciação. Desempenham importante papel nos ritos de circuncisão, menstruação, núpcias ou outros similares. São realizadas, em geral, ao redor do fogo, com o rosto voltado para o Leste. Este detalhe ainda é difundido por pensadores e filósofos espiritualistas, já que a morte, o fim, assim como o ocaso estão a Oeste (o passado) e o renascimento e a regeneração à Leste (o amanhã). O ballet "La Bayadère" mostra um típico exemplo de dança de iniciação ao redor do fogo [3]. As danças de iniciação nupciais executadas em torno de pedras "sagradas" recebem o nome de danças ígneas.

 

  • Danças de tocha. Têm o fogo como tema, o que significava e significa um sinal de distinção para quem o carrega. A tocha olímpica é uma boa alegoria da importância da luz, pelo que simboliza da luta do homem para dominar o desconhecido e iluminar as trevas na permanente busca do amanhã e da superação dos seus limites.

 

  • Danças fúnebres. Em geral executadas em círculo, têm ao centro figuras (xamã, animal, mesa com alimentos, etc.) que só guardam com a festividade uma relação muito distante. Com o sentido de proteger os mortos ou os vivos contra espíritos hostis ou constituindo-se numa dança que possibilite ao morto um encontro com os antepassados, a dança funerária tem o propósito de criar um vínculo entre os seres deste e os de outro mundo.

 

  • Danças guerreiras. As danças guerreiras sem imagem fazem parte do universo feminino. Sem participarem dos combates, as mulheres acreditavam que dançando conseguiam se transportar teluricamente para ajudar os homens na guerra. Pelas danças guerreiras verifica-se que, como em todos os aspectos das manifestações humanas, a dança pode se apresentar através de culturas contrastantes. O extrovertido atinge o êxtase imitando o que pode ver e o introvertido o faz sentindo-se possuído pelo ser que está representando.

As danças mescladas se constituem da mistura das duas formas já descritas e surgiram da mistura dos povos e da difusão de suas diversas culturas. A dança por sua própria natureza terminou por transportar o dançarino extrovertido a um mundo no qual a mera imitação corporal foi superada, afastando-o do sóbrio e da razão e levando-o à abstração dos introvertidos.

Como danças mescladas classificam-se, entre outras:

  • Danças de fertilidade. Exemplificando: uma vasilha com água colocada no centro de um círculo cumpre o papel de ímã para atrair a chuva. Estilizando-se a imagem chega-se à clássica figura de recolher com as mãos uma água que já nem é mais colocada, elevando-as em oferenda. Executado por uma virgem, esse gesto tem o significado religioso da fecundidade; refinado pelo ballet ele transformou-se no movimento conhecido como port-de-bras [4].

 

  • Danças de iniciação. São praticadas por ambos os sexos.

 

  • Danças de armas. A alternância entre imagem e abstração determinaram as formas das danças européias recentes. Na forma clássica da dança de espadas que floresceu entre os séculos XIV e XVIII a movimentação acontecia ao ar livre. Contava com dois guias e um bufão e os dançarinos, com o rosto pintado e guizos costurados aos trajes brancos, portavam espadas e usavam pífanos e tambores. Os bailarinos trançavam no solo suas armas realizando a coreografia ao redor delas, terminando a cerimônia com exibições de esgrima, uma dança de ronda e um cumprimento final. As danças de paus, com seus golpes rítmicos provenientes da batida de um pau contra o outro, também são consideradas danças de armas. Os paus e as espadas são elementos usados à vontade por diversos povos e pelos mais diferentes motivos. Vale lembrar do nosso maculelê, por exemplo.

 

  • Danças astrais. Podem ser solares ou lunares. Subordinavam-se à idéia de assegurar a vida e o crescimento através dos movimentos e das figuras formadas pelos astros, movendo-se a favor ou contra os ponteiros do relógio. As danças solares são menos criativas, já que o percurso do sol é sempre uniforme e sua imagem sempre a mesma. Como movimentação, o sol só induz à formação de círculo, o que pode ser facilmente observável até pelas letras das nossas músicas populares. "... Sol, pelo amor de Deus não venha agora que a morena vai logo embora..." Feitiço da Vila de Noel Rosa. A lua se apresenta aos nossos olhos de diversas maneiras o que torna as danças lunares muito mais interessantes e inspiradoras. As danças de coxear significando seres ou forças da natureza também são consideradas astrais. Interpretam o ciclo da existência: nascimento, vida, morte e renascimento e a debilidade do recém-nascido que, na sua fragilidade, não consegue caminhar sem coxear.

 

  • Danças de máscara. A máscara cumpria dois papéis: por um lado protegia quem a usava e por outro permitia que ele assumisse um outro "eu". Sem esse acessório a anulação da consciência na dança dependia de uma transformação física visível. A dualidade do significado da máscara se afirma na medida em que, para os povos de caráter extrovertido, ela incorporava os traços do animal que estava representando; para os de cultura introvertida representava um espírito a quem o xamã tivesse contemplado em sonhos.


No próximo capítulo ainda será possível encontrar referências a máscara enquanto ornamento de inúmeras danças.



Eliana Caminada é Orientadora e consultora, escreveu vários livros sobre dança, e responde pelas disciplinas História da Dança e Técnica de Ballet Clássico no Centro Universitário da Cidade. Professora convidada no projeto "Sons Dançados do Brasil" do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, colabora com o jornal "Dança, Arte & Ação" e participa, como palestrante, jurada ou pedagoga, de festivais e mostras de dança por todo o Brasil. Foi bailarina do "Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro", primeira-bailarina do "Balé Guairá" e solista do "Ballet da Ópera Estatal de Munique".
Ela também edita o site www.elianacaminada.net

e-mail: e.caminada@gmail.com

 

Ver outros artigos da coluna

 

[1] Um dos mais importantes coreógrafos ingleses do século XX. Nasceu no Equador e teve sua mais famosa obra montada para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro desde 1981.

[2] Ver a história e análise da obra disponibilizada em artigo separado.

[3] Ver a história e análise da obra disponibilizada em artigo separado.

[4] Transporte de ininterrupto braços: um dos mais belo e complexos movimentos do ballet clássico.

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