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Coluna "Por dentro da dança"
Entendendo a Dança 6
Grécia, berço da civilização ocidental

Eliana Caminada

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Quando a dualidade entre o bem e o mal, a vida e a morte, ou seja, o conflito foi encenado, entrou no teatro o princípio dinâmico do drama (drao) que, ao lado da trama será desta maneira teatralizado tanto na tragédia quanto na comédia, nesta última sem a catástrofe final
John Gassner1
 

O fantástico imaginário mítico grego suplementou as lendas de Tamuz e de Osiris, ambas oriundas do Oriente próximo, na figura de Adonis, deus amado tanto por Afrodite, deusa do amor e da vida, quanto por Perséfone, entidade do mundo subterrâneo. Zeus, o deus supremo da Grécia, decide então que Adonis, tal e qual a vegetação, dividirá seu tempo entre os dois mundos. Segundo a mitologia, Adonis teria sido ferido de morte por um javali, sendo tal paixão por um esporte tão perigoso insuflada por Marte, esposo de Afrodite, com ciúmes de sua mulher. Este poderia até ser considerado o primeiro drama passional da história do teatro.

“...Os mitos do egípcio Osiris e do grego Dioniso são flagrantemente semelhantes, ainda que, em definitivo independentes, e a estrutura dos ritos e das cerimônias que acompanhava cada culto são expressões similares às da mímica da morte e dos rituais de vegetação na terra. Dioniso não se tornou do deus do grande período da tragédia grega antes que muitas gerações tivessem fundido suas contribuições oriundas de diversos outros mitos e práticas numa distinta divindade. O próprio Dioniso foi, para as lendas gregas, uma importação meio oriental relativamente tardia, mas, uma vez incorporado, conteria todas as características alienígenas anteriores...Há inúmeras teorias sobre sua origem. Para uns ele já era encontrado entre os Acádios, numa das tribos descendentes da raça ariana de Brâmanes hindus. Essa tribo era formada por astrólogos na Babilônia e seus conceitos de Baco-Dioniso seriam oriundos de tribos nômades do oeste da Índia. . O nome Dioniso pode ser lido como Deus-de-Nysa, uma região montanhosa entre o Egito e a Fenícia, também conhecida como o Monte Sinai de Moisés. Também se dizia ser Osiris oriundo de Nysa. Mais tarde, cristãos heréticos diriam que o nome secreto de Jesus era Baco; seu corpo e seu sangue, assim como o vinho do deus grego, é pão e vinho...”
Lincoln Kirstein

A Grécia levou o drama ao seu ápice. Descrever, resumidamente, a riqueza, influência e importância de sua civilização revela-se uma tarefa impossível. Inúmeras são as expressões ligadas ao universo artístico oriundas da Grécia: estética (aysthesis), ética (ethos), drama (drao), sofrimento (pathos), conflito, agonia (agon), desempenho (práxis), cena (skené), teatro (théatron), poço de orquestra (orkestiqué = primitivamente, o espaço entre o público e os artistas), purificação através da arte (katarse), etc...

Dentre as lendas ligadas à Grécia, que não apenas explicam características comportamentais observadas à luz da psicanálise, como continuam a habitar nossos sonhos e pesadelos, uma das mais conhecidas diz respeito ao Minotauro. Sua origem pode ter sido a Taurokathapsia, costume cretense no qual os jovens se enfrentavam com touros de cornos gigantescos. Apoiando-se nesses cornos e utilizando o impulso do próprio animal, pulavam por cima dele, o que, evidentemente, deve ter produzido vítimas, gerando a lenda do Minotauro. Esta coloca sua origem em Pasífae, a esposa infiel do rei Minos, e em sua ligação com Tauro (comandante do exército de Minos), sendo o Minotauro, o fruto dessa união proibida, num mito enraizado em religiões pré-helenísticas.

De Creta veio também o culto a Dioniso, deus-bode, deus-touro, deus da fertilidade, da liberdade, do prazer e do vinho. Danças de saltos acompanhadas de hinos apropriados - os ditirambos - eram executadas pelas mênades e levavam à histeria. O desenvolvimento do drama no ditirambo dionisíaco acabou por incorporar, assim como no de Osiris, o que havia sido feito ou sofrido pelo deus, detalhes de contos ancestrais, seu pathos, seu agon, sua morte.

Gradativamente, os rituais se sistematizaram. A dança livre, improvisada, a verdadeira Orkesis, pouco a pouco passou a ser uma sucessão de danças compostas que representavam o significado real de “chorein”, origem da palavra coreografia. Ou seja, a dança teatral era coreografada, marcada, diferente da dança livre, chamada “dança pura”, presente nos cultos. As primeiras, de acordo com Aristóteles, foram denominadas “danças mimadas”, isto é, expressivas. Por fim, as palavras associadas às danças ditirâmbicas, inicialmente espontâneas e fragmentadas, pouco a pouco se tornaram elaboradas e estritas, para o que muito contribuiu a evolução da própria poesia grega.

Estávamos diante da tragédia teatral, do confronto dos homens com seu próprio destino, tema fundamental da tragédia. Sobre esse confronto a dramaturgia grega criou seus heróis. Para o filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) a tragédia não significava a imitação dos fatos, mas a trama, a vida com seus fatos, seus acontecimentos, felizes ou não. Pretendendo bem executar essa pantomima, os gregos deram enorme contribuição ao desenvolvimento da arte mimética - do “mimetes” (artista bailarino) -, arte que encontraria a perfeição na arte romana e que seria o grande legado para a dança daquela civilização.

A força do culto ao deus criador e anárquico, mesmo sistematizado, manteve-se vivo, acabando por se transformar no rito precursor do carnaval (carrus navalis era a embarcação que conduzia o intérprete dos hinos, uma espécie de ator-dançarino). Ë também a origem dos dois ramos do teatro, cantado e dançado, nas suas formas essenciais: a tragédia (tragos=bode + odé=canto) e a comédia (komos=desfile/união sexual + odé=canto).
A associação da sexualidade com a comédia tornou-a vítima de um preconceito que de acordo com alguns autores ainda vige e, quem sabe, explica, o fato de sua representação ainda ser considerada uma forma de teatro de menor importância em relação à tragédia, com o que absolutamente não concordamos. Com a palavra os atores.

Nossa concepção, mais viva do que nunca, do Bumba-meu-boi, remonta pelo menos a essa época, sem esquecer que o Egito, igualmente, adorou como divindade o Boi Ápis. Matar um touro para incorporar seu “Mana’, seu poder mágico, partilhar seu sangue e sua carne, era comum a povos primitivos; assim também sua ressurreição, quando o sacerdote vestia sua pele e com ela dançava.

De certa forma, à liberdade dos ritos dionisíacos, os filósofos opuseram - ou melhor, complementaram - o culto a Apolo, deus da beleza, da harmonia, da organização e da ordem, sempre acompanhado de musas. A da dança e do canto coral era Terpsícore: Terpsi (prazer) e core (talvez proveniente de Kara, a alegria). Apolo trouxe consigo a concepção de um deus essencialmente grego, em contraposição a Dioniso, deus de origem oriental. Sua aparênci,a portanto, devia se aproximar do ideal de beleza encontrado no próprio homem, nos atletas, nos jogos esportivos.

“Essa era a maneira de entender daquele povo; eles só puderam conceber o invisível através do visível, sentir e criar a beleza a partir daquela que viam ao redor de si e que abstraíam mediante a luz da mente”
Mitologia- Abril Cultural

Foram os gregos que descobriram que a beleza de um corpo não é apenas o resultado de proporções corretas mas, também, de uma postura anatômica particular. A pírrica, uma de suas danças mais significativas, fez parte obrigatória da educação do cidadão grego. A pírrica, na verdade uma dança de espadas, sobreviveria na forma da dança mourisca, ligando-nos, mais uma vez, a essa extraordinária herança da cultura grega, raiz da civilização ocidental. A mourisca, base das nossas “Cavalhadas” e “Cheganças”, belas festividades folclóricas brasileiríssimas, também foi a primeira entrada – entrée, dança de entrada – da encenação que o mundo conheceria, na Renascença, com o nome de “ballet”.

Dos gregos veio, igualmente, a primeira construção teatral, os bilhetes vendidos, os festivais e os concursos de tragédias e comédias.
“...Já se acreditou que a invenção da tragédia foi uma invenção exclusiva dos gregos dóricos e de suas odes corais inteiramente em honra de Dioniso, deus da vegetação e da ressurreição, ancestral imediato de Ésquilo. Mas, num sentido mais estrito, tem-se demonstrado que a tragédia surgiu de homenagens totêmicas oferecidas em pagamento a ‘chefes da morte’ de tribos de toda a Grécia e esses chefes, mais tarde, esquecidas sua identidades individuais, tiveram seus mitos e ritos complementados de acordo com as conveniências sociais, políticas e religiosas sob o nome do novo deus, Dioniso...”
Lincoln Kirstein

Entre 325 e 406 a.C. viveram os três maiores trágicos gregos: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Ésquilo expandiu o monodrama representado por Thespis nos ditirambos dionisíacos, conferindo à tragédia a forma pela qual ficou conhecida; Sófocles, contemporâneo de Eurípedes, definiu a ambos da seguinte maneira:

“Eu pinto os homens como deveriam ser. Eurípedes os pinta como eles são.” sem idealizações.

Os grandes trágicos levaram para o palco a força e o espírito de um tempo de vitória, de exaltação do homem, com o sentido de erigir uma nova humanidade. A tragédia foi, pois, um produto da época áurea da Grécia. De um tempo de fazer chorar para fazer pensar.
A comédia teve em Aristófanes (450-388 A.C.), seu maior representante. Literal, cruel, ela reproduziu a decadência de tudo o que havia sido construído, a diluição de valores e conceitos, a derrocada da grandeza humana. Tempo marcado pela mesquinharia, individualismo e medo, precisava fazer rir para fazer pensar. Não havia mais lágrimas para chorar.

Dominada, decadente, a Grécia e seu teatro sobreviveram na comédia e no drama satírico que lhe sucedia nos espetáculos. Ao contrário da tragédia que fazia chorar para fazer pensar, a comédia, muito mais cruel, fazia rir para o mesmo fim. A dança na tragédia já havia desaparecido ao longo dos séculos, mas logrou manter-se nas comédias.

Os gregos já possuíam, ao que tudo indica, uma colocação plástica do corpo no espaço, noções de croisé2 , effacé3 , plié4 , en dehors5 dos pés, saltos e até de entrechats6 , em estrita contradição, de acordo com a coreógrafa Maryla Gremo7 (ver capítulo posterior, a ser publicado, sobre o ballet no Brasil), à Isadora Duncan8 , a qual teria idealizado uma dança grega totalmente pessoal. Quanto ao conhecimento que aparentemente possuíam de dança nas pontas dos pés é absolutamente normal, uma vez que este tipo de dança faz parte do repertório de danças abertas em harmonia com o corpo e era encontrada em outros povos dançarinos extrovertidos.

Conquistada, a Grécia perdeu a sua independência. Bufões e atores, representando e dançando, não só pelo país mas também por Alexandria, representavam personagens femininos e masculinos, até porque era vedada a mulher a participação em espetáculos públicos. Encenando peças, ora trágicas, ora cômicas, transformados em jograis, esses bufões eram chamados de “hilarodos”. No início sua atuação não tinha a intenção de fazer rir, mas de inspirar no ânimo de quem assiste uma sensação agradável e prazerosa.
Pode-se afirmar que na Grécia encontramo-nos a meio caminho entre as primitivas danças de máscara da Idade da Pedra e as bacanais desenfreadas de Roma Imperial, no rumo que leva ao moderno carnaval dos países cristãos.

A dança coral do drama certamente não foi circular: o coro da tragédia e do drama satírico mostravam-se, em geral, em filas. Provavelmente, na transição para a dança espetacular se desenhou uma vaga marcação circular e o coro, que já intervinha em mais da metade do drama, acabou por se colocar em meio círculo, na frente do cenário, transformando-se, com seus cantos e danças, na parte mais fundamental dos interlúdios líricos, participando até, vez por outra, da ação dramática.

A dança precisou mostrar que possuía potencialidade dramática o que, certamente, o grego, povo super dotado da faculdade visual possuía em alto grau. Todas as formas mais rudimentares da dança de imitação foram preservadas até a Grécia Clássica. Tanto as danças solo quanto as de conjunto foram sujeitas ao domínio de “phorai”, gestos expressivos de movimentos e ações, e de “schemata”, gestos que expressavam o caráter de uma pessoa. São numerosos os gestos desta “cheironomia”, escola dos movimentos das mãos, lembrando por vezes danças hindus e japonesas.

“A imitação como um todo, depende da raça e da cultura, mas a preferência concedida ao jogo de mãos não é natural, pressupõe uma sistematização e, quem sabe uma comunicação? ”
Curt Sachs

Sem dúvida foi admirável este povo grego, para quem o corpo foi fator de equilíbrio, não só físico mas mental, além de fonte de conhecimento e sabedoria. Desenvolveram sua dança de conjunto, de forma que a mente e a vontade individual desapareciam, para se mover em absoluta uniformidade, como se guiados por um coreógrafo, sem contudo, perder a alegria, a espontaneidade, a harmonia e o prazer pessoal, fazendo uso, provavelmente de movimentos originados de compulsão interior e de acordo com as leis que regem o próprio corpo do bailarino.

Contudo, uma mudança radical vinha a caminho: Roma e o império romano assumiram o domínio do mundo conhecido e o ampliaram a fronteiras inimagináveis. Os romanos adotariam muitos aspectos da cultura grega, a quem, sabidamente, admiravam, mas não conseguiram captar-lhes mais do que a forma. A essência perdeu-se. A dança nunca seria a arte mais representativa daquele povo muito mais movido pela racionalidade.


1Livro “Mestres do Teatro” de John Gassner.

2Cruzado - Posição do corpo no ballet clássico, sugere a idéia, para o público, de que existe um cruzamento das pernas quando estendidas à frente ou atrás.

3Apagado - Posição do corpo no ballet clássico, ao contrário do croisé, mantém a idéia de linhas que não se cruzam.

4Agachamento – Movimento básico do ballet, ato de dobrar os joelhos, movimento fundamental, entre outras coisas, para atenuar a descida da meia-ponta e de saltos, sejam eles grandes ou pequenos.

5Para fora – Posição em que os pés ficam abertos formando linhas horizontais. Sobre o conceito de en dehors foi construída toda a técnica do ballet clássico.

6Entrelaçamento – Movimento do ballet no qual as coxas se cruzam no ar. Quanto maior o número de cruzamentos, bem feitos, o bailarino for capaz de executar, mais virtuosístico ele será considerado

7Primeira-bailarina e coreógrafa do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, de origem polonesa. Mulher dotada de grande talento e extraordinária cultura geral.

8Ver artigo publicado no Portal “Bailarina atípica”.

 

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Eliana Caminada é Orientadora e consultora, escreveu vários livros sobre dança, e responde pelas disciplinas História da Dança e Técnica de Ballet Clássico no Centro Universitário da Cidade. Professora convidada no projeto "Sons Dançados do Brasil" do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, colabora com o jornal "Dança, Arte & Ação" e participa, como palestrante, jurada ou pedagoga, de festivais e mostras de dança por todo o Brasil. Foi bailarina do "Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro", primeira-bailarina do "Balé Guairá" e solista do "Ballet da Ópera Estatal de Munique".
Ela também edita o site www.elianacaminada.net

e-mail: e.caminada@gmail.com

 

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