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O (In)Acessível

Sílvio Reda

 

Se havia algo de podre no reino da Dinamarca, hoje há algo de intrigante na sociedade modernizada. Ou seja, a contradição na capacidade de criar e estimular a consumo inúmeros bens e ditas necessidades, explícita em uma forma eficiente e neurotizante de distanciar do "consumidor" estes mesmos bens que estimula, rotineiramente, a consumir. Há um exercício de aproximar e a um só tempo distanciar as pessoas daquilo que são convencidas a, vitalmente, necessitar.

Disse sociedade modernizada, pois se fôssemos realmente uma sociedade moderna teríamos de ter acompanhado a evolução sob regras e patamares mais lógicos e saudáveis. Caso verdadeiramente fôssemos pessoas modernas não nos acompanhariam, no dia-a-dia, as desigualdades, a precariedade de nossas instituições, a violência, a insegurança, seja ela no aspecto físico, seja na dimensão psicológica, as frustrações, o sentimento de vazio, o despropósito dos afazeres diários.

Agora há pouco, início da noite, passei pela frente de uma escola pública. À sua porta de entrada vi três adolescentes, "matando" aula por óbvio, mas não foi isso que mais chamou a minha atenção. Vi e percebi, principalmente nos olhos de um deles, uma certa decepção, um certo cansaço (apesar de muito jovem ainda), uma carência de sentido por tudo: pela vida, pelo mundo que escapava e se esvaía de seu olhar, por uma vida que ele certamente não consegue compreender e possuir. Isso me sensibilizou e, quem sabe, chocou.

Era como se ele me dissesse por seus olhos, mudamente, porém não imperceptivelmente, que está ali cumprindo com uma tarefa, um dever do qual não resultará frutos. Acredito que boa parte dos jovens estejam sentindo isso ultimamente. A escola lhes monta um ciclo, um mapa, um roteiro a ser cumprido. Ocorre que quando chegam à adolescência, necessitados ou subjugados a cumprir com os primeiros compromissos da vida adulta (e isso cada vez mais cedo, hoje em dia), deparam-se com um mundo que despreza ou desconhece as regras que lhes foram ensinadas. Terão de se virar ante uma realidade absolutamente estranha e refratária ao que lhes foi dito e transmitido.

Ou seja, o manual e as ferramentas recebidas por tantos anos descreve uma máquina, uma contingência, que não mais existe (ou nunca existiu), cujas ferramentas não possuem a mínima utilidade. A vida adulta e suas exigências revelam-se um modelo nunca antes descrito, possui marcas, características jamais mencionadas e o aluno, agora cidadão do mundo, não possui referências suficientes para tratar dos contratempos e das eventualidades que naturalmente surgem do exercício de viver. E se ingere, pela primeira vez, a dose inebriante e estonteante da frustração, da baixa estima e da decepção da qual muitos, por toda a vida, não recuperarão a plena lucidez.

Isso se dá, em realidade, em todos os níveis. Nas universidades também não somos preparados para sermos profissionais. Somos apenas e tão só peças reproduzidas uniformemente, mantidas e adestradas na reduzida e simplória realidade de uma sala de aula, programadas a responder perguntas não menos evidentes. Somos um produto cobiçado de mercado, aceitos e mensurados não pela dedicação, caráter e conhecimento, porém muito mais pelas mensalidades pagas em dia.

Estamos, assim, em muitos patamares do cotidiano, nos neurotizando. Estamos construindo um mundo cujo caminho de acesso nós próprios desconhecemos. Tornamos acessível, aproximamos de nós apenas o apetite pelas coisas, pelas forjadas necessidades, mas inacessível o desfrute, o proveito destas mesmas coisas e necessidades. Em torturados e torturadores nos confundimos. Por isso a frustração começa cedo; por isso, de olhos ainda jovens escorregam, sem empecilho ou vergonha alguma de se mostrar, a falta de sentido no viver e abre-se um buraco no peito percebido no cotidiano de muitos, lugar que deveria estar preenchido pela esperança e pelo entusiasmo.

Fizemos da vida uma dificuldade; dos dias, um estorvo. Fizemos do consumo uma lei natural e da capacidade de suprir nossas necessidades uma quimera, uma aventura complicada demais para ser cumprida satisfatoriamente. Por isso o jovem olha para si e vê-se criatura hipossuficiente, insignificante, incapaz de mudar as engrenagens de um sistema para com o qual está fadado a conviver.

A boa notícia é que estas estruturas sistêmicas do cotidiano foram programadas, criadas por nós e por nós podem (precisam), ser desprogramadas e extintas, na verdade, superadas por uma forma mais humana e harmônica de vida e de desfrute da existência. Pode não existir guerra sem combate, mas pode existir combate sem guerra. Não é preciso encarar tal sistema como um inimigo, mas a mantença, a preguiça de questioná-lo e alterá-lo, como os reais inimigos, até por que ele não é uma identidade, porém algo identificado como nosso atual e "único" modelo de vida. Por isso, urge tomarmos uma posição, não de vanguarda ou evidência, porém de prevalência da nossa verdadeira natureza que se dará mais por atos no cotidiano, do que pelo desenrolar de palavras.

E o que chamo de verdadeira natureza está na capacidade de tocar o outro e no outro, de respeitar o seu espaço de ser, de permitir o silêncio reconhecendo-o como necessidade cotidiana, de (re)estabelecer vínculos onde pontes um dia ruíram ou jamais existiram, de comprometer-se em vez de apenas observar as coisas de longe, de crer e saber mais do que simplesmente acreditar, de confiar, de mais transparecer do que dificultar ou dissimular, de aliar-se mais à espontaneidade do que ao cumprimento de tarefas e de ser alguém mais pleno e realizado em si próprio do que ainda hoje prepondera: o de se "ser" alguém preocupado em impressionar o outro.

 

* A Fernanda Melchior Griggio. Há os amores que nascem e eles são apenas casuais. Há os amores que são descobertos e eles são eternos.



* Sílvio Reda é advogado, especializado em direito do consumidor, e Juiz Leigo em Porto Alegre.
email: beckreda@yahoo.com.br

 

 


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