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Educação
: limites ou excelência
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"É preciso que os alunos saibam que há limites". A expressão tornou-se um lugar-comum entre professores, educadores e pais de jovens e adolescentes. Desconheço a origem desta máxima, entretanto, a julgar pela freqüência com que é citada, parece ser uma diretriz muito usada na esfera educacional. Lembro de ter ouvido a frase há anos, da boca de um diretor de uma escola privada, ao comentar a dificuldade que enfrentava para lidar com a bagunça que imperava no colégio que dirigia. Recentemente uma educadora, autora de livro sobre a adolescência, declarava em entrevista: “os jovens estão sendo mal orientados. Os pais não estabelecem limites para os filhos, que crescem superprotegidos. Sem haver aprendido que existem limites, os adolescentes se sentem livres para fazer o que bem entendem”. O tema dos limites da educação já se popularizou e recentemente a sentença “é preciso que os adolescentes saibam que há limites” foi ao ar em jornal veiculado pela televisão em rede nacional. A educação está sendo pautada por limites. Estabelecer
limites para a ação do jovem é algo assim como dizer: “você é livre e
deve administrar a sua liberdade. Não somos nós, pais e educadores, quem
deve impor nada a você. A grande conquista educacional da segunda metade
deste século é que você administre a própria liberdade dentro dos limites”.
Este ponto de vista pressupõe uma correção de rota em relação ao grito
que se ouvia em 68: “é proibido proibir”. Os jovens que na época repetiam
o slogan são hoje os pais que dizem aos seus filhos: “é preciso que vocês
saibam que há limites”. Entretanto, em relação a limites, a curiosidade da criança, a energia vital do jovem e a formação da personalidade do adolescente faz com que se dirijam, até como auto-afirmação, às fronteiras do permitido. Os pais e educadores podem dizer: “se eles não ultrapassarem os limites, estaremos cumprindo a nossa missão, isto é, respeitar a liberdade individual, a capacidade criativa e a iniciativa do jovem dentro de parâmetros de comportamento”. De acordo com esta perspectiva, os filhos, os alunos e os orientados estão sendo bem educados quando respeitem os limites. A educação para os limites pode ser comparada à dos presos na Ilha do Diabo, como aparece, por exemplo, no filme Papillon. Os adultos tratam os jovens como a presos. Permitem a liberdade de movimento dentro dos limites, advertindo, porém, que não devem ser ultrapassados. O mar é perigoso e o castigo pode ser a própria morte. O perigo, porém, é atraente. Quem não se sente atraído pelo limite? Quem não gosta de chegar perto do precipício para olhar o mar batendo nas rochas? E mais ainda na juventude... Educar para os limites é expor os jovens aos riscos dos limites. Quais, porém, são os limites que os jovens devem respeitar e os pais e educadores ensinar? O limite da vida é a morte, como mostra a chacina de Denver, em que dois jovens armados assassinaram quinze pessoas, pretendendo matar 500, e depois se suicidaram. O limite do trote dos veteranos da Medicina da USP foi a morte de um calouro. O limite de levar a faculdade “no limite” — só para passar — é tirar 4,8 e ser reprovado. O limite para reprovar por faltas depende das escolas mas é freqüente que alunos universitários sejam reprovados por faltas. O limite das experiências sexuais na adolescência, antes do casamento, são a gravidez e as famosas DST (doenças sexualmente transmissíveis), entre elas a AIDS. Quem vai até o limite pode sofrer as conseqüências de uma gravidez ou paternidade indesejada, ou ainda de uma doença venérea. O limite de usar uma só vez drogas, como simples experiência de vida, pode ser o vício, o roubo para alimentar o vício, a prisão por uso ou tráfico de drogas, ou mesmo a morte por overdose. Educar para os limites é submeter a graves riscos
os jovens e adolescentes. A idéia que está por trás dos limites é que
a liberdade é um fim e não um meio. Diz-se: “o jovem é livre, mas não
deve ultrapassar o limite”. Falso. O jovem não é mais livre quando faz
o que quer dentro de determinadas fronteiras. O jovem exercita melhor
a sua liberdade quando escolhe dar o melhor de si, quando aspira à excelência
humana, quando aspira a coisas grandes. A diferença entre educar para a liberdade como fim e como meio está em ter um projeto vital. Cada pessoa é diferente e precisa encontrar seu lugar no mundo. Educar é conduzir para fora (ex ducere) o melhor de cada um. A missão do educador é descobrir o que há de melhor em cada pessoa e estimular esse jovem para que cultive seus melhores dons. Isso supõe saber que há um melhor e um pior, ou seja que há projetos vitais que tornam felizes as pessoas, e modos de vida que escravizam e tornam infelizes os outros. Em qualquer caso, o educador precisa saber mostrar aos jovens quais as melhores aspirações que podem cultivar. A liberdade é um dom que pode frutificar ou perder-se, mas nunca um fim em si. A educação, por essa razão, não é apenas fixar limites, mas orientar em direção a metas de excelência e objetivos no uso da liberdade. Não é impor ou coagir a liberdade, mas canalizar a liberdade de modo que frutifique em benefício dos outros e da própria pessoa. A criança, o jovem e o adolescente precisam de uma orientação para se tornarem adultos e poder empreender por si a própria vida. É uma arte complexa e delicada. Cada pessoa é diferente. Orientar é ir soltando a linha até que um dia os filhos, os alunos enfrentem o mar sozinhos, por conta própria, com segurança e confiança. Em muitos casos o rumo que os filhos tomam na vida não é responsabilidade dos pais, mas os pais têm obrigação de educar os filhos. A educação que apenas fixa limites não parece ser a melhor receita educativa para o desenvolvimento da personalidade dos filhos. No pólo oposto à idéia de limites, a educação na Grécia clássica tinha um projeto para o jovem e o adolescente. A educação — paidéia — grega estimulava a excelência na formação do jovem, para que se desenvolvesse como pessoa e alcançasse a maturidade humana e intelectual. O historiador francês Henri Irénée Marrou, autor da História da Educação na Antigüidade (São Paulo, E.P.U., 1975, p. 345), comenta que o ideal da educação clássica era de ordem ética: tornar a criança uma pessoa boa e bela: “Quando o grego menciona a formação da infância é antes de tudo e essencialmente, a formação moral”. Em lugar de fixar limites procura levar ao limite a idéia de educação. A paidéia grega “não é apenas uma técnica própria para a criança que a equipa e prepara desde cedo para tornar-se um homem (...) a mesma palavra em grego helenístico serve para designar o resultado desse esforço, continuando para além dos anos escolares (...) e vem a significar cultura no sentido perfetivo que a palavra tem hoje entre nós: o estado de um espírito plenamente desenvolvido, tendo desabrochado todas as suas virtualidades, a do homem tornado verdadeiramente homem; é notável constatar que quando Varrão e Cícero tiverem de traduzir paidéia preferirão dizer em latim humanitas” (p.158). Sócrates, um dos pilares da civilização grega e pai de um legado fecundo, empenhou a própria vida na tarefa educativa. Acusado de corromper a juventude e condenado por não compactuar com a injustiça e a mentira, também tinha uma projeto educativo. Em sua defesa, registrada pelo seu discípulo Platão, disse: “Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos” (São Paulo: Abril Cultural, 1985, p.15). Para Sócrates, mais importante do que a riqueza era a virtude, e se dispôs a morrer por não faltar com a verdade do que fazia e dizia. Selou seus ensinamentos com a própria morte. Aristóteles também defendeu um projeto educativo na Ética a Nicômaco, seu mais importante tratado de ética, dedicado ao filho. As pessoas agem procurando um bem, comenta no primeiro capítulo, e o maior bem (que torna a pessoa feliz) está na virtude: “a felicidade não está na diversão. Seria absurdo que o fim do homem fosse a diversão e que o homem se afadigasse e padecesse toda a vida por causa da diversão (...). A felicidade é uma atividade de acordo com a virtude” (1176b). A educação, para Aristóteles, não está em fixar limites mas em ensinar e viver de acordo com a virtude. Essa perspectiva aplica-se a todos, porém especialmente aos jovens, como manifesta este filósofo no último capítulo da sua obra de Ética: “é difícil, quando se é jovem, encontrar a direção reta para a virtude a não ser pela educação, porque a vida moderada e dura não é agradável ao vulgo, e principalmente aos jovens (1179b)”. Viver de acordo com a virtude não é tão fácil nem tão atraente quanto apenas fixar limites. A virtude é uma conquista da excelência pelo treino e pelo esforço. Os frutos da virtude, porém, compensam o esforço: “não devemos seguir os conselhos de alguns que dizem que, sendo homens, devemos pensar somente humanamente e, sendo mortais, ocupar-nos unicamente das coisas mortais, mas devemos, na medida do possível, imortalizar-nos e fazer todo o esforço para viver de acordo com o mais excelente que há em nós” (1177b). José Maria Rodriguez Ramos é doutor em economia pela USP e professor universitário
Interprensa - www.interprensa.com.br - Junho 1999 |
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