Evaristo Eduardo de Miranda (*)
Tive filhas gêmeas. Uma
bênção de Deus. Uma riqueza. No começo me preocupei
muito. Sobretudo em como estar presente durante sua vida e caminhada.
Num mundo onde tudo muda tão rápido e onde os desafios são
inéditos, a gente fica se perguntando se está realmente
capacitado para educar os filhos. Li. Observei. Escutei. Parte da resposta
veio do exemplo de carpinteiro. Mas no início fui apreensão,
susto e medo.
A vida, e nós podemos tê-la em abundância, é
algo imenso. Os filhos são uma das maneiras privilegiadas para
se participar um pouco mais dessa plenitude. Um mínimo de atenção
e todo pai vai descobrindo a personalidade única de cada filho.
No meu caso, com as gêmeas, isso foi tão flagrante, apesar
ou por causa da situação gemelar.
A riqueza e a autonomia da personalidade de cada uma foram mudando minhas
apreensões. Até agora, pelo menos, verifico que efetivamente
elas me educaram muito mais do que eu as eduquei. Com elas aprendi e sigo
aprendendo a ser mais coerente, a não mentir nem de brincadeira,
a ser mais atento, mais organizado, mais decidido sobre minhas prioridades,
relativizando muita coisa e em particular o tempo e o espaço do
trabalho. Revalorizei o relacionamento com minha mulher e venho descobrindo
minhas dimensões femininas. Tenho lido mais, sobre coisas que nunca
imaginei. Aprendi e compreendi. Mas sobretudo me surpreendi, em atitudes
e situações nunca imaginadas. Elas me trouxeram mais vida
e uma até nova espiritualidade, mais mística e rica.
Essa força e autonomia da infância alterou a responsabilidade
paternal que eu me atribuía: a de estar presente na vida de meus
filhos. A gente se sente mais jardineiro e menos dono das plantas. Pelo
contrário, cada vez mais sinto a dificuldade de ausentar-me. Saber
retirar-me. Deixar o filho ir na sua direção, para si. Retirar-se
é mais do que nunca fazer por ele o que ele pode fazer sozinho,
como recomenda a pedagogia. Coisa em si já muito difícil.
É um misto de intuição, com desapego, contemplação
e atenção.
Foi nesse pensamento, de desapego com algo que a gente tende a se achar
meio dono, que comecei a revalorizar e redescobrir, como pai, um outro
pai: São José. Para mim, de alguma forma, ele era a imagem
de um pai estranho. Meio fracassado. No fundo eu tinha uma idéia
de um homem um pouco traído e vítima de uma condição
contra a qual não pode fazer nada, senão aceitar. Hoje ele
é para mim um modelo de pai. O pai que soube retirar-se. Com certeza
é muito mais fácil estar presente na vida de um filho do
que retirar-se. Inclusive existem pais sempre presentes e dominadores
na vida de filhos que já passaram dos 30 e 40 anos... alguns os
perseguem mesmo depois de suas mortes.
Se retirar não significa abandonar. José foi um pai diligente.
Agiu com coragem, presença e eficiência quando necessário:
assistiu Maria no parto, organizou a fuga e a vida no Egito, o retorno
a Palestina etc. Mas diante do crescimento e da vida própria do
filho soube se retirar. Com um desapego de dar inveja. Num silêncio
e numa discrição tão sutil, ele desaparece sem ser
notado, até dos textos evangélicos. Esse pai soube retirar-se
diante da autonomia da vida e, em particular, face as dimensões
da vida do seu filho. Abdicou de muita coisa. Inclusive de uma certa condição
de paternidade: um paradigma para nós, Igreja, e um paradoxo para
os não crentes.
Esse abdicar da paternidade, da propriedade, da posse e do poder - sobre
o qual psicologia moderna já se debruçou tanto - nos revela
um homem extremamente centrado na sua essência. Em caso de adultério,
o marido podia levar a mulher aos tribunais e ela poderia ser apedrejada.
Mas nos dizeres do Evangelho José era o vir justus (vir: varão,
viril, virtude, força). "Iosseph, seu homem, é um justo.
Não desejando sua desgraça resolve deixá-la secretamente
(Mt 1,19)." Essa retirada ele não cumprirá. Ao sonhar,
ele entende que o que nela é gerado é do sopro sagrado (Mt
1,20). Ele manteve com sua mulher, até pela via da dúvida
e do conflito, uma relação de espaço ao feminino
particularmente radical e de serviço.
Um homem com quem Deus só falava por sonhos! Pelo menos quatro
falas e quatro sonhos (Mt 1,20; 2,13; 2,19 e 2,22) são relatados
em Mateus. Ele vive atento, em harmonia e diálogo com seu ser profundo.
Em José, essa extraordinária capacidade de lembrar, interpretar
e agir segundo seus próprios sonhos, diz muito sobre sua alma,
sua interioridade e seu equilíbrio psicológico. Seu nome
hebraico, Iosseph, significa "Ele acrescentará".
Não reivindico nenhuma exegese particular sobre a figura de José,
resgatado de forma polissêmica pela Igreja e movimentos religiosos
ao longo dos séculos. Me permito, como pai, uma leitura da condição
vivida por José e nós, homens pais. Suas atitudes, descritas
no Evangelho, são próximas de muitos aspectos da nossa condição
paterna e a interpelam.
As vezes, em fins de semana ou em passeios com amigos, acontece das mulheres
voltarem num carro e os homens em outro. Me imagino chegar em casa pensando
que meu filho está com minha mulher, e ela o contrário,
e não encontrá-lo. Diante do seu desaparecimento nossa angústia
seria imensa. Interromper o curso de nossas vidas. Buscá-lo desesperadamente
por três dias em outra cidade... Se ao encontrá-lo, se ele
me dissesse - do alto dos seus 12 anos - que estava cuidando de sua vida,
nem sei que eu faria. Ele levaria uma bronca inimaginável. A cultura
judaica assegurava ao pai a propriedade dos filhos, acertando seus casamentos
(Gn 24,3) e podendo até condená-los a morte (Gn 38,24),
mas José e Maria se calaram!
Muitas vezes acentua-se o resto do texto: Maria guardando tudo no seu
coração. Parece um silêncio tático. Como pai
vejo nesse calar algo emblemático: a capacidade deles, de se retirarem.
De reconhecerem que aquela pessoa não lhes pertence. De que eles
continuam participando de Algo grandioso e surpreendente. De uma existência
ordinária, eles passaram para uma vida poeticamente extra-ordinária.
Eu tenho dificuldade em imaginá-los entendendo e dimensionando
tudo, como num script conhecido de uma peça de teatro (Lc 2,50).
Se eles não entendiam, tinham a sabedoria de calar-se. As vezes
eu me surpreendo com as considerações de minhas filhas sobre
a vida, o mundo, nossa família etc. Todos pais vivem isso e ficam
impressionados de como as crianças relacionam fatos, de forma inteligente
e as vezes precoce. Mas gostaria de destacar outras falas das crianças:
são palavras e observações mais raras mas muito extraordinárias!
Diante delas o máximo a fazer é calar-se. Não dá
mesmo para comentar, nem para ruminar. É calar-se! É algo
tão surpreendente, nos ultrapassa e afere a autonomia da vida e
da Criação. Não é fácil calar-se diante
dos filhos. Talvez também seja chegado o momento de calar-me. Apenas
uma palavra final sobre S. José e a boa morte...
No catolicismo S. José é o Padroeiro da Boa Morte. Pela
tradição eclesial, ele teria morrido antes de Jesus e Maria.
Provavelmente, então, morreu tendo os dois em sua cabeceira. Nada
desagradável. Difícil imaginar morte em melhor companhia:
de um lado Jesus e do outro Maria. Daí a Boa Morte. Mas ele é
mesmo o Padroeiro da Boa Morte, dada a sua vida de desapego. Morre bem
quem está desapegado de tudo que não está destinado
a eternidade. Está pronto para partir, livre de qualquer amarra.
O desapego de São José na paternidade e no matrimônio
- e até da condição de personagem - o faz um exemplo
de caminho para a boa morte. Morte que de certa forma os filhos - docemente
e em família - também nos anunciam e nos ajudam a aceitar,
como parte da plenitude da Vida.
(*) Doutor em ecologia, professor da USP, pesquisador
do Núcleo de Monitoramento Ambiental da EMBRAPA, autor dos livros
"Água, Sopro e Luz" e "Agora e na Hora" (Ed.
Loyola), e membro do Conselho Consultivo do Instituto Ciência e
Fé (www.cienciaefe.org.br).
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Com os filhos, a gente se sente mais jardineiro
e menos dono das plantas.Com certeza é muito mais fácil
estar presente na vida de um filho do que retirar-se.
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