Por Rafael Ruiz *
Uma reflexão sobre a passagem do milênio
mostra que, se o século 20 foi o século da luta pelos direitos
humanos, ele nunca foram tão desrespeitados , em vários
sentidos. E a globalização trouxe consigo a ilusão
de que nenhuma ação em nível local pode contribuir
para mudar a situação. Na verdade, está nas mãos
de cada um lutar para que, ao seu redor - em casa, no ambiente de trabalho,
nos momentos de lazer -, os direitos humanos sejam respeitados e a justiça
prevaleça. Trata-se apenas de escolher o lado certo, e essa escolha
livre pode fazer toda a diferença.
A mudança de milênio é um bom
momento para fazer balanço do passado e votos para o futuro. Uma
simples olhada nas notícias veiculadas pela imprensa nos últimos
meses do milênio anterior podem levar-nos a conclusões otimistas
ou pessimistas - o poeta espanhol Campoamor dizia que "tudo dependia
da cor do cristal com o qual se olhava para a realidade..." Poderíamos,
porém, tirar uma conclusão de certa forma definitiva: há
um desejo latente de justiça em todas as partes do mundo.
Uma segunda conclusão - esta já não tão definitiva
e que tem provocado as reflexões que levaram a este artigo - poderia
ser que grande parte da responsabilidade pelas injustiças, erros,
fraudes, crimes e tantos outros atos e situações que despertam
esse anseio geral por justiça é provocado precisamente pelas
muitas escolhas erradas que os homens realizam.
E me parece que não é uma conclusão tão definitiva
porque ao longo dos dois últimos séculos têm sido
muitos os rios de tinta impressa para argumentar sobre a capacidade de
decisão e escolha do ser humano: estruturalismo, condicionalismo,
determinismos, moralismos e vários outros "ismos" pareciam
se unir para chegar à conclusão de que o homem dificilmente
consegue escolher livremente. A conclusão evidente desse tipo de
raciocínio foi de que, se não há liberdade, também
não se pode falar em responsabilidade.
A globalização dos últimos anos
acabou por colocar a "cereja" no "bolo determinista"
: os números, as estatísticas, as dimensões e as
proporções dos problemas e das injustiças são
tão grandes, tão inabarcáveis, tão impossíveis
de captar numa singela atenção que ficamos com a sensação
- sensação que a própria mídia contribui para
fomentar - de que não há nada a fazer: qualquer solução
teria um efeito tão pequeno neste mundo já globalizado que
de nada adiantaria...
Contudo, cada geração soube encontrar os valores e os modelos
não apenas de conduta, mas principalmente de percepção
da própria realidade para saber arcar com as conseqüências
dos seus atos e encontrar saídas mais justas, mais nobres e mais
humanas para as encruzilhadas da História.
Não foi à toa que um dos primeiros filósofos da História
do Ocidente, Santo Agostinho de Hipona, comentava, enquanto assistia à
queda do Império Romano: "Tempos maus, tempos difíceis,
dizem os homens. Vivamos bem, e os tempos serão bons. Os tempos
somos nós: tal como formos, assim serão os tempos"
(Serm. 86, 8). O que verificamos, juntamente com o desenrolar da História,
é que de nada adiantam teorias ilusórias que pretendam justificar
o injustificável: a perda da dignidade humana, o confisco da liberdade,
a eliminação dos inocentes, a fraude, a mentira, a corrupção,
a coisificação das relações humanas...
Basta olhar o mundo ao redor para que um certo ar de estremecimento e
de perplexidade tome conta dos nossos olhos. Talvez nunca tenha existido
um século na história da humanidade em que mais se falou,
se exigiu, se lutou, se matou e morreu pela vigência dos Direitos
Humanos. Ao mesmo tempo, talvez nunca houve uma época em que, de
maneira tão consciente e tão cruel, tenham sido espezinhados
esses mesmos direitos.
Não se trata apenas de um problema de ordem
internacional ou de âmbito globalizado; trata-se, principalmente,
de uma questão corriqueira, cotidiana, trivial. Os direitos humanos
são sufocados diariamente no escritório, nos programas de
televisão, no trânsito, nas conversas e desconversas com
os amigos, nas relações familiares...
É uma ilusão pensar que não se pode fazer nada. É
uma falácia refugiar-se nas teorias filosóficas e psicológicas
do século passado (agora podemos dizer tranqüilamente "do
século passado" sem cair em pedantismo...) que tentaram convencer-nos
da impossibilidade ou da incapacidade da liberdade humana de escolher,
assim como também é falso que não possamos fazer
nada diante das dimensões "globalizadas" dos problemas:
"O homem é realmente homem precisamente no momento em que
decide com liberdade e com responsabilidade." (Fizzotti, Eugenio.
De Freud a Frankl. Interrogantes sobre el vacío existencial. Eunsa,
Pamplona, 1977, p.145).
Somos nós, cada um de nós, quem pode ou não dar uma
resposta a cada desafio apresentado pela vida. É claro que surgirão
dificuldades e obstáculos, às vezes intransponíveis.
Mas nenhum condicionamento, nenhuma estrutura, nenhuma esquema globalizado
será suficientemente forte para resistir à ação
decidida e constante do ser humano.
Também aqui o filósofo de Hipona descortina um segredo definitivo:
a necessidade de ser ter amor e paixão pela justiça: "É
preciso amar a Justiça, mas nesse amor há graus que os que
progridem devem escalar. O primeiro é não antepor à
Justiça nenhuma das coisas que nos agradam. Ou seja, entre todas
as coisas que nos dão prazer, a Justiça deve ser a principal".
Não se trata de misticismos nem de estoicismos.
Não se trata de soluções maniqueístas, sempre
cartesianamente fáceis de resolver. Não se trata de arrancar
o prazer da vida para colocar no seu lugar o estrito cumprimento de um
dever desagradável. Enfim, "não se trata de que não
nos agradem as outras coisas, mas de que a Justiça nos agrade mais,
que a amemos acima de todos os prazeres e gozos, incluídos os lícitos",
continua Agostinho.
Tudo isso, a estas alturas do terceiro milênio da humanidade, pode
parecer utópico ou até um tanto místico ou estóico,
mas não é assim. Pensemos que não diz respeito a
grandes questões típicas da "aldeia global", mas
àquelas questões que fazem parte do nosso acontecer diário.
Depende de nós compactuar ou não com a mediocridade no escritório,
no departamento ou na repartição; depende de nós
sermos coniventes ou não com a grosseira canhestra de certos programas
de televisão, com a insolência dos filhos, com a indiferença
dos amigos. Depende de nós que, aqui e agora, se faça ou
não justiça.
Dessa forma, a vida diária transforma-se numa "tarefa a realizar",
como dizia Ortega y Gasset. Cada ato que praticamos, cada escolha que
fazemos significa - desculpem-me o neologismo eletrônico - "salvar",
dentre as várias possibilidades que temos, uma e apenas uma.
Poderemos nos arrepender, mas aquela escolha ficará "salva"
para sempre. Poderemos até desligar-nos ou esquecer-nos dela, mas
as suas conseqüências seguir-nos-ão para sempre. E será
por isso que poderemos consertar as injustiças e restabelecer a
justiça. Porque temos a chance de pedir perdão e tentar
remediar as conseqüências erradas.
O psiquiatra Víktor Frankl afirmava que "o homem sempre decide
o que será no próximo momento... Uma personalidade individual
não é, de maneira alguma, previsível" (Fizzotti,
E.,p. 179). De certa forma, temos nas mãos os destinos desse novo
milênio.
Essa é a nossa alternativa. Qualquer escolha - como intuiu Sartre
- significa uma negação de todas as outras possibilidades.
Não podemos recusar-nos a escolher, justo agora que entramos no
novo milênio. E a Justiça ainda está aguardando alguém
que a escolha...
* Rafael Ruiz é mestre em Direito Internacional
e professor de História na Universidade de São Paulo
Fonte:INTERPRENSA - ANO V - Número
45 - www.interprensa.com.br
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Na verdade, está nas mãos
de cada um lutar para que, ao seu redor - em casa, no ambiente de trabalho,
nos momentos de lazer -, os direitos humanos sejam respeitados e a justiça
prevaleça.
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