Portal da Família
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Utilidades domésticas Inês Rodrigues
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Tarquínio rodava o mundo fazendo pesquisas. Publicava-as num almanaque e assim custeava suas viagens de mochileiro mambembe, sem grandes aspirações nem economias no banco. O almanaque que pagava suas despesas trazia os dados mais curiosos sobre o mundo: quantos grãos de milho uma galinha engole por dia na Andaluzia, quantas azeitonas os habitantes de Ítaca comem por ano, qual é o melhor cappuccino do Lácio, e assim por diante. Desde seu lançamento, as pesquisas despertavam um interessse cada vez maior entre os leitores e os livretos impressos em papel jornal vendiam feito pãozinho quente. Quando o sucesso de Tarquínio como repórter começava a trazer-lhe fama, os editores resolveram mandá-lo à Inglaterra. Deveria contar aos leitores como os britânicos limpam suas casas. Viajar assim, feito um caracol, com todos os seus pertences resumidos a duas mochilas, sempre fora o sonho de Tarquínio. Em cada novo país onde colocava os pés ele se lembrava da infância. Naquele tempo, ele vivia só com a mãe, que ganhava a vida como passadeira. No apartamento miúdo, ele sentava-se no chão com o atlas nas mãos, perto da tábua de passar e da pilha de roupas. Durante horas fazia-lhe perguntas: "Mãe, onde fica a Europa?", "Por que a China é grande?", "O que é fiorde?". A mãe, acompanhando com a cabeça o vaivém do ferro, tentava responder, e às vezes até inventava países como Nuchabumba ou Chocotópolis, que não estavam nos mapas do menino. Com o tempo, a fascinação de Tarquínio por viagens só aumentou. O emprego como repórter-pesquisador foi o primeiro que arranjou ao sair da faculdade. O salário não importava tanto. Ele sabia que seu destino não estava numa redação de jornal no centro da cidade. E foi assim que nosso homem chegou a Londres numa tarde de verão em que fazia um raro calor, 33 graus. Mesmo concentrado em descobrir quais utilidades domésticas atraem os ingleses, Tarquínio não deixou de se encantar com a cidade até então só conhecida pelas fotografias e mapas da infância. Ao sair da estação Victoria, caminhou poucas quadras até o Tâmisa. A água sempre fria vive pontilhada por barcos de turistas que vão e vêm, leste-oeste, oeste-leste. Pôr os olhos nesse rio que não pára nunca de lavar a cidade foi uma boa maneira de começar a matéria. Nos dias seguintes, trabalhou duro: visitou casas, lojas, conversou com pessoas . Descobriu que em Londres é dificílimo encontrar rodo para vender. Talvez impossível. As casas não possuem tanque de roupa, nem ralo no chão para que a água escoe. Quase todos têm máquina de lavar e limpam o piso com um esfregão macio, o "mop". Muitas residências têm carpete no banheiro e não é um escândalo enxagüar uma meia ou uma cueca na pia da cozinha. Lavagem de louça, então, rendeu um capítulo à parte. Curiosíssimo sobre o jeito de se colocar a louça de molho em água fervente antes de esfregá-la com uma escovinha, colocando-a para secar sem enxágue, ele arrumou um jeito de ver uma demonstração numa casa de família. Era um casal de professores de meia idade e suas três filhas. Muito educados, porém eficientes, sem perder tempo com amenidades, senhor e senhora Mills receberam-no bem. Serviram-lhe uma xícara de chá e depois o levaram para a cozinha. Lá, Penélope, a filha mais velha, começava a limpar a louça do jantar. Discreto e um tanto envergonhado, Tarquínio postou-se a seu lado com um bloquinho de notas nas mãos. Ela debruçou-lhe um olhar azul turquesa, que se sobressaía por entre os cabelos vermelho-fogo e a pele de Branca de Neve. - O que há de tão interessante
numa pia cheia de pratos nojentos? - perguntou ela, entre duas gargalhadas. Em silêncio, ele preferiu só observar: a pia possuía dois compartimentos para encher de água. Penélope enchia um deles com água fervente da torneira. Punha muito detergente, criando um banho de espuma grossa. Depois, ela colocava toda a louça suja ali, vestia luvas de borracha e entrava em ação. Com uma escovinha de cabo comprido, ela arrancava a sujeira de pratos, copos, talheres e - o mais curioso - punha-os diretamente para secar. Às vezes enxaguava alguns itens no outro compartimento da pia. Mas, em geral, eles iam para o escorredor com alguns pingos de espuma na superfície. Tarquínio anotou tudo cheio de compostura. Aos poucos ia-se desconcentrando do trabalho e, discretamente, admirava os cabelos ruivos da moça. A matéria sobre utilidades domésticas foi um sucesso. Mas ele recusou outras viagens e preferiu, por enquanto, continuar escrevendo sobre os ingleses. Os cabelos vermelhos de Penélope continuam fascinando o nosso repórter, que ultimamente, já vem até lavando louça sem enxágüe. Inês Rodrigues é jornalista e reside em Londres. Inês Rodrigues/2002 |
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