Portal da Família
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Natal Moderno Inês Rodrigues
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Depois de conversar com a quadragésima-sétima criança, Papai Noel teve suas calças batizadas por um farto xixi que o menino deixara escapar. E não agüentou: - "Gente, pelo amor do Jesus Menino, preciso de uma pausa", gritou o bom velhinho para o ajudante postado atrás da cadeira e do saco de presentes. - "Ãaahh??? Quê???" O barulho no shopping center era semelhante ao de uma discoteca. - "Preciso de uma pausa", gritou Papai Noel, apontando a mancha úmida nas calças. O moço, então, paciente, foi até a fila de crianças. Elas quase desapareciam atrás das montanhas de sacolas carregadas pelas mães: - Papai Noel precisa limpar as calças. Vocês podem retornar daqui a pouco Só uns dez minutinhos e ele já está de volta. - "Eu quero ir com ele", gritou o menino lourinho, primeiro da fila, com um copo do MacDonald's na mão. - "Não, não pode. Se você for, todas as crianças vão querer ir junto também, já imaginou?", explicava o ajudante, que tinha ar de fome crônica. - "Ué, eu sempre achei que Papai Noel não ia ao banheiro Ele não pode fazer mágica pra limpar a calça?" A idéia era da menina gorducha, atrás do lourinho na fila. Agarrada aos cabelos desgrenhados da sua Barbie, foi arrancada do lugar pela mãe impaciente. Bluewater - dizem aqui - é o maior shopping center da Europa. Fica num vale gigantesco e suas torres de estação espacial são vistas da estrada que sai de Londres rumo ao Canal da Mancha. É um enclave americanizado no velho continente, cada vez menos resistente aos costumes megalomaníacos do outro lado do Atlântico. Num fim de semana de dezembro, é difícil achar vaga no estacionamento já às onze da manhã. Pois foi lá que o nosso Papai Noel arrumou emprego durante todo o mês. Já não seria a sua primeira experiência de aposentado fazendo bicos natalinos: o salário deste ano seria gasto em presentes para os cinco netos. E lá vai ele, caminhando apressado, tentando achar o banheiro. O xixi do menino formava uma rodela escura na calça vermelha da fantasia. Rodou um piso inteiro para descobrir que o banheiro indicado era o feminino. Deu meia volta e dirigiu-se ao elevador. Teria que descer. Apertou o botão e logo a campainha fez "plim", flechinha para baixo. Que alívio. Mas durou pouco. O elevador vinha lotado com uma excursão escolar, uns quinze pirralhos: - Papai Noel!!! - Olha, é Papai Noel!!! Êêêêêêêê! E vieram para o ataque. Uns abraçavam suas pernas, outros puxavam a barba (milagre, era de verdade, ai que dor!), outros davam beijos. Algumas meninas queriam dar-lhe pirulitos de presente. Dois deles, meio chupados, acabaram grudados na manga da blusa e na ponta do gorro. Papai Noel fazia seu papel: sorria, conversava com ar de vovô coruja. Carregado para dentro do elevador, fez três viagens inteiras pelos diferentes pisos do shopping. Ao final, beijou vários rostinhos lambuzados e prometeu voltar. Mentiu para escapar: "Tenho que visitar um menininho doente". Saiu correndo e, ops, estava longe do banheiro outra vez. Foi parar no estacionamento descoberto. A temperatura não passava de três graus e ele sentiu uma onda gelada entrando pela pele e perfurando seu corpo até os ossos. O vento frio lá fora era de paralisar pensamentos. Papai Noel levou alguns segundos para se lembrar que estava só com o blusão de cetim da fantasia e uma camisetinha por baixo. Era melhor voltar correndo, pegar outro elevador e, finalmente, encontraria o banheiro. Que alívio chegar lá! Depois de limpar a urina alheia das calças, quase pronto para enfrentar outra maratona, ele se olhou no espelho: a barba lambuzada de chocolate, certamente sobra de algum beijo afoito. - "Se minha barba fosse de mentira, teria que mandá-la para a lavanderia todos os dias", murmurou enquanto lavava o rosto. Quando procurava a toalha de papel para secar a barba pingando, um pai com seus três meninos entrou no banheiro. O velhinho já aprontava o sorriso treinado para os pimpolhos, mas teve que recuar. O mais novo, mais preocupado com fraldas do que com presentes, fez cara de terror e começou a chorar, com medo da roupa vermelha e da barba molhada. Gritava aterrorizado, enquanto os outros dois se encolhiam junto às pernas do pai. Meio sem jeito, Papai Noel pediu licença e escapou do desprezo inesperado. Ao sair, olhou o relógio de pulso: havia perdido mais de meia hora no trajeto entre a cadeira e o banheiro. Estava atrasadíssimo. Voltou correndo, passando feito ventania pelas vitrines, mandando beijos aqui e ali para crianças que o chamavam, seu nome ecoando pelas paredes. Passou em frente ao Café Costa: - "Ai que vontade de tomar um chá quente ", suspirou. Mas não havia tempo. Chegou, arfando, à cadeira, montada ao lado do saco de presentes, em frente a uma grande loja de departamentos. E durante as duas horas seguintes, distribuiu chocolates e brinquedos de plástico, pegou bebês no colo, posou para fotos. Comeu um sanduíche de frango que a loja lhe oferecia e pensou em sair outra vez. Mas faltavam dez minutos para que outro Papai Noel viesse lhe render na cadeira-trono. Só pensava no chá fumegante. O ajudante sussurrou por detrás do saco de presentes: - O outro já chegou, pode sair. Papai Noel acenou para a criançada, entrou atrás do palanque improvisado e viu o colega - um tanto magricela para a função - entrar no palco. E a gritaria recomeçou. Satisfeito por ter cumprido mais um dia, o bom velhinho pensou em assistir ao novo filme de James Bond. Mas aquele chá ainda o esperava lá no segundo piso, não daria tempo de pegar a próxima sessão. Pediu uma xícara gigante, bastante leite e açúcar para completar. E sentou-se calmamente numa das mesas do café, os pés repousando na cadeira em frente à sua. Foi quando apareceu o repórter fotográfico, procurando a cena perfeita para a primeira página do jornal do dia seguinte, véspera de natal. Ao encontrar Papai Noel cansado, estirado entre
duas cadeiras no meio de um shopping center, sorvendo o seu chá,
não pensou duas vezes. E foi assim que o bom velhinho virou celebridade.
Saiu na primeira página e deu o que falar. Foram entrevistas, mais
fotos, ofereceram-se até para escrever sua biografia. Os cinco
netos do nosso herói ficaram tão orgulhosos em ver o avô
nos jornais que não quiseram saber de outro presente de Natal.
E assim, o dinheiro ganho no bico natalino foi doado às crianças
pobres. E o troco serviu de verba para as sessões de cinema do
ano seguinte.
Inês Rodrigues é jornalista e tradutora. Já atuou nas seções de artes e música em diversas empresas de comunicação brasileiras, tais como Jornal da Tarde, Fundação Padre Anchieta, Editora Globo e Rádio Gazeta. Atualmente reside em Londres. |
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