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Ines Rodrigues

Coluna "Do lado de cá"

Gentilezas e Indiferenças

Inês Rodrigues
ines_rodrigues@hotmail.com


«Quem se importa em sujar a roupa? Sol é para ser aproveitado até o último raio!»

«Caro leitor do Almanaque Popular:

Você deve se lembrar de mim: sou Tarquínio Esperança, repórter-viajante internacional, correndo o mundo em busca de novidades para esta publicação. Agora fui promovido a correspondente na Inglaterra. E, das margens do Tâmisa, conto a vocês uma façanha dos ingleses, este povo que tenta manter a classe, mesmo suportando bravamente a chuva e os verões curtos e mornos. Mas a previsão do tempo não está na pauta. Ao invés disso, falo, com prazer, sobre gentileza e tolerância, aspectos da vida londrina cujos códigos de conduta são curiosos e até contraditórios.

Quando aqui cheguei, pensei que a gentileza não existia. Enganado pelo estereótipo que os livros velhos nos incutem - aquele do inglês cheio de formalidades e etiqueta - eu esperava encontrar uma atmosfera permanente de chá das cinco em finas xícaras de porcelana florida. Claro, foi uma decepção: nesta metrópole de sete milhões de almas, muitos almoçam só um sanduíche, comprado na esquina em embalagens plásticas na forma de triângulo, no exato tamanho do pão de fôrma cortado ao meio. Come-se na rua, na lanchonete, no escritório. Cada um enfiado no seu mundo de pensamentos. Se há sol, come-se no banco do parque ou sentado na grama. Quem se importa em sujar a roupa? Sol é para ser aproveitado até o último raio. Dá-se aos outros a idéia (e a inveja) de que o dia radioso não foi totalmente desperdiçado no trabalho.

Pois bem, numa tarde de céu azul comprei um sanduíche de mussarela com rúcula e rumei para o Embankment. É um parque pequenininho, de frente para o rio, que quase some em meio à massa de prédios sufocantes em volta. Num dos bancos estava sentada uma moça, lendo jornal e comendo seu sanduíche triangular de frango. Lia concentrada e não olhava para ninguém. Na praça, alguém ameaçou tirar a roupa e discutiu com a polícia. Um homem todo vestido de vermelho iniciou um discurso antiglobalização. Dois ciganos começavam uma briga em húngaro. Um casal de tatuados, sentados sobre uma esteira de palha, comparava seus corpos à mostra: queriam descobrir, numa espécie de competição, se havia ainda espaço sobrando para mais tinta. Do outro lado, mães corajosas empurravam carrinhos com bebês e tentavam encontrar espaço para um piquenique. Um músico tocava saxofone e uma garota japonesa de uns 15 anos tentava fazer-nos acreditar que podia tocar violino. Os sons se misturavam, não dava para ouvir nem um nem outro.

A moça do sanduíche, isolada como muitos no parque, não prestava atenção em nada. Ela ocupou um lado do banco com sua garrafa de suco de frutas, e o outro com uma parte do seu Daily Mirror. Fui lá reclamar a parte do assento à qual eu tinha direito.

Ela mal se mexeu, balbuciou um "hã-hã" e tirou o jornal do meu lugar. Sentei-me, comi, não trocamos sequer um olhar. Entre mordidas, eu filosofava sobre a tolerância, uma vantagem tão propagandeada da vida em Londres. Há lugar para todos, ninguém mexe com ninguém. A frase é velha, mas verdadeira: se eu quiser andar pelado na rua com uma fita verde no cabelo, OK, desde que não incomode. Por outro lado, tenho o supremo direito de não ser disturbado. Privacidade, regra de ouro. Mas, até onde a tolerância vira indiferença?

Ao levantar-se do banco, a moça dirigiu-me um "bye" e, discretamente, pousou o jornal, todo em ordem, ao meu lado. Com um olhar cúmplice entendi que ela o deixava de presente. Aceitei, tímido, com um meio sorriso.

Mais tarde, tomei o metrô de volta para casa. Muitos liam jornais, livros, revistas. Cada um enfiado no seu mundo de palavras. Porém, durante a viagem, notei a gentileza: alguns exemplares eram deixados nos assentos. E muitos passageiros, apenas entram no vagão, recolhem aquele que mais lhes interessa, lêem, levam-no até para casa.

Terminei meu artigo sobre a vida familiar dos Blair naquele Daily Mirror já manuseado. Antes de sair do trem, pousei o jornal arrumadinho no assento. Dei assim meu boa-noite aos companheiros de viagem.»



Inês Rodrigues é jornalista e tradutora. Já atuou nas seções de artes e música em diversas empresas de comunicação brasileiras, tais como Jornal da Tarde, Fundação Padre Anchieta, Editora Globo e Rádio Gazeta. Atualmente reside em Londres.

 


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