"Recordar é viver", diz o poeta.
Outro dia, casualmente, deparei-me com a foto da cerimônia de colação
de grau da minha primeira turma de história da dança num
curso de licenciatura plena. Lá estava eu ao lado das novas colegas
e da paraninfa, minha companheira Vera Aragão, posando de patrona.
Como esquecer desse episódio, tão marcante na nova interface
que a dança me propunha? Emocionada, revi rosto por rosto daquelas
alunas tão queridas, muitas presentes na minha vida até
hoje, pensei na Missa rezada na manhã do dia anterior, quando fiquei
conhecendo as famílias daquelas jovens, sorri relembrando da festa
à noite, do barulho inerente ao jovem e da alegria peculiar à
juventude amparada, amada e respeitada. Procurei o discurso que fora impelida
a escrever e falar publicamente num palco de teatro, tornei a lê-lo,
pensei em como a cena nunca se afastou totalmente de mim, em como continuo
a pisar o espaço teatral com a reverência de um templo.
O enfoque principal do texto era a ética. Colocava eu, então,
a questão:
"O que justifica um curso de graduação em dança?
Até que ponto a opção longa e dispendiosa, ainda
que, em geral, profundamente prazerosa, precisa ser valorizada pela direção
da instituição que a oferece, pelo corpo docente que tem
que indicar não um só, mas diversos caminhos para o estudante,
pelo próprio alunado, muitas vezes em dúvida sobre a legitimidade
de sua escolha e da validade, em termos práticos, de seu diploma
de nível superior e, o mais difícil, pelos pais, tão
justamente preocupados com a possível insegurança de uma
carreira ligada à área artística?"
"Certamente", ponderava, "o país não tem
respondido positivamente a esses questionamentos o que, a meu ver, aumenta
o valor da resposta que vem dos próprios estudantes".
Começava lembrando àquelas jovens e queridas meninas quanta
cumplicidade e afetividade haviam envolvido nossa relação,
tão informal, e o quanto isso fora determinante para o desenvolvimento
do meu trabalho que reconheço, foi, e continua sendo, muito dependente
da colaboração delas. Sou filha de um professor que sempre
acreditou que o distanciamento entre gerações não
estimula respeito e muito menos confiança e que não tinha
o menor pudor em se revelar sentimental e emotivo. Nunca encontrei motivo
para arrependimento diante dessa postura.
Emoção é presença freqüente nas minhas
aulas; incontáveis são as vezes em que choramos juntos,
eu e as turmas, assistindo a um ballet pelo vídeo ou falando
sobre um artista. Na ocasião declarei-me sinceramente emocionada,
e um tanto perplexa, admitia, diante da opção profissional
e, portanto, existencial, pela dança num país como o nosso,
onde o povo desconhece o nome de qualquer autoridade oficial da área
cultural sem que isso provoque ao menos uma reflexão em qualquer
nível.
Sempre digo que chorar de emoção é uma bênção.
Triste é chorar de dor.
E prossegui mencionando a integridade de como elas estavam trilhando esse
caminho.
Explicava:
"Porque, sem dúvida, ele pode ser mais curto, mais fácil,
menos verdadeiro e menos honesto. Mas vocês não recuaram
diante da grande questão da vida, qual seja, a de exercer de forma
ética e moral a liberdade de escolha que Deus, a vida e os pais
lhes proporcionaram. Livres, vocês assumem a decisão de que
vida desejam construir, a responsabilidade pelas decisões tomadas,
a edificação de uma existência autêntica e verdadeira."
Hoje o primeiro parágrafo teria que ser revisto. A presença
de Gilberto Gil à frente de um ministério, talvez já
tenha conferido ao cargo a visibilidade que o justifica e o torna legítimo.
Longe das autoridades de gabinete, o ministro Gil é senhor de uma
obra de inquestionável importância para a cultura popular
brasileira. Sua figura, percebida e assimilada por brasileiros de todas
as classes sociais, creio eu, é capaz de transformar um tenso plenário
internacional numa grande confraternização universal. Milagres
da Arte!
Quanto ao segundo parágrafo, mais do que nunca respeito os que
constroem sua vida sobre valores éticos e morais. A liberdade é
um bem e um direito, não resta a dúvida, mas tem um preço
que começa pelo reconhecimento e respeito pelo direito do próximo.
Continuava ponderando: "Nossa verdade está comprometida com
a arte; apesar de muitos profetas apocalípticos anunciarem centenas
de vezes sua morte sabemos que ela não é mortal; ao contrário
- se existe eternidade na vida é na arte que ela se manifesta,
se Deus está em nós é através da arte que
expressamos sua essência".
De fato, estou convicta de que é, sobretudo, através da
arte que o Divino se manifesta em nós. Mais do que a ciência,
mais do que o esporte, a Arte tem sido, não apenas o farol da humanidade,
mas o que lhe permitiu ter história. A trajetória do homem
sempre foi e sempre será contada e preservada por intermédio
das obras de artistas plásticos, músicos, dançarinos,
literatos, que nas suas criações reproduzem, ao longo de
tantos mil anos, as diversas etapas que vivemos nessa terra azul.
Sublinhava:
"Estamos conscientes de que o domínio dos meios de expressão
é fruto de uma longa conquista. Dentre eles escolhemos, talvez,
o mais dicotômico: a dança. A dança não prescinde
nem do tempo nem do espaço, nem da razão e da técnica
nem da emoção, nem da força atlética e humana
nem da aparência de fragilidade dos nossos corpos, nem da transitoriedade
do momento em que o movimento se realiza nem da eternidade de como ele
se fixa na alma de quem assiste. Somos artistas da dança; temos
um pé na superação da força da gravidade,
tentamos voar, mas ninguém, como nós, ama com mais força
o chão, no qual evolui, dança, senta, bate-papo, estuda
e até descansa".
Clarificando a questão: A música necessita de tempo para
que se concretize, embora possa prescindir de espaço. Por outro
lado, qualquer pintura, uma vez concluída, ocupará fatalmente
seu espaço, ainda que não precisemos destinar nenhum segundo
a sua contemplação.
Lembrava citando um fragmento do livro "Dentro da Dança"
do grande bailarino moderno Murray Louis, que expressou como poucos o
que é o mundo de um profissional da dança visto por dentro
dele:
"Dentro da dança vocês optaram pelo aspecto mais generoso,
mais anônimo e menos glamuroso: a de orientador. O "eu-professor"
é completamente desinteressado; dá de si até o que
não lhe pertence e quando o espetáculo vai para cena, embora
o bailarino tenha dependido desse artista até uma hora antes, ele
é a única parte da engrenagem que envolve performers(1)
, coreógrafo, ensaiador, remontador(2),
maestro, artistas plásticos, etc."
Afirma Louis, com razão, que o professor é um artista tão
dedicado e sensível como os demais. Constrói sua obra -
o próprio bailarino - sem saber o resultado final, o que, como
em toda obra de arte, é exatamente o que a justifica. Sem tom de
lamento constata que o professor de ballet, raramente reverenciado,
é alguém para quem as luzes do palco e o aplauso do público
não são destinados e que, em geral, fica esquecido pelos
próprios bailarinos. Sem falar da crítica, voltada demais
para suas próprias elucubrações para se preocupar
com os bastidores de uma companhia de dança.
Senhores leitores! Um parêntese nessas recordações:
Quando falo em críticos e seus veículos de comunicação,
não estou me referindo a repórteres deslocados para cobrir
a área artística, quase sempre sem qualquer conhecimento
dela, comprometidos apenas com a notícia que fofocas de bastidor
podem render. O meio de dança não é grande "produtor"
de escândalos, logo, ele é bem pouco contemplado.
Retornando àquele momento que fixei para sempre, adverti às
novas profissionais sobre o compromisso que assumíamos de tentar
suprir a omissão do Estado na cultura, principalmente no que se
refere às artes cênicas, numa época dominada pelo
materialismo e pela mecanização, na qual a necessidade de
poesia e criações artísticas de qualidade são
mais fundamentais do que sempre. Recordava-lhes:
"Nossa intelectualidade desconhece totalmente a dança em qualquer
de suas formas de expressão; nossa inibição diante
do poder da palavra e da retórica nos fragiliza ainda mais. Só
a cultura geral e a instrução poderão conferir representatividade
e legitimidade a nossa categoria".
Conclamava:
"Respeitem todas as tendências de dança, elas não
se excluem, elas se completam. Da nossa história, tão bela
e tão rica, retornem sempre ao saber e à importância
das inigualáveis figuras históricas de Noverre(3);
Coralli e Perrot(4);
Petipa(5); Fokine(6);
Duncan(7); Nijinski(8);
Vaganova(9); Laban(10);
Grahan(11); Balanchine(12);
Bejart(13); MacMillan(14);
Roland Petit(15),
entre tantos outros que ficaram porque já foram julgados pela história."
Dizia eu, reafirmando o que defendo hoje:
"Lembrem-se: a arte tem um compromisso com a sensibilidade e com
a beleza; a verdade matemática é o axioma da ciência,
não da arte. Procurem com todas as forças impedir que a
dança se transforme em uma mera exibição vazia de
marcas atléticas ou numa "pseudo-arte" que nada mais
é do que palavras bonitas amparadas pelos meios de comunicação,
mas desprovidas do essencial: a vivência corporal da dança".
Por fim, exortava-as a guardar nos corações a capacidade
de admirar os artistas e companheiros que transcendem nossos limites.
Parafraseando a velha fábula da raposa e as uvas observava: "Se
as uvas da parreira não estão ao nosso alcance admitamos,
com alegria e êxtase, que elas são saborosas, cheirosas e
que Deus nos deu sentidos para percebê-las, olhá-las e nos
maravilhar com sua beleza".
Encerrava dizendo que gostaria de vê-las transformadas em autênticas
"sathiagrahis" (16) da dança.
Meu discurso terminava aqui. Hoje não poderia dá-lo por
encerrado. A ênfase na valorização da práxis
como base da construção do conhecimento teórico também
na ética e no apego à verdade me pareceu pertinente ao momento
atual, mas a falta de menção a rapazes, num texto meu, que
sou casada há 37 anos com o pai de meu filho, um bailarino clássico,
é bem reveladora de que ainda temos muito o que caminhar sob o
ponto de vista ético e de apego à verdade.
Creio que cabe aqui uma convocação: usemos nossa paixão
pela arte, nossa crença em sua capacidade de servir como instrumento
de salvação, exercício de sensibilidade, inclusão
e superação de preconceitos para divulgá-la junto
a esse povo criativo, rítmico, dançante, caloroso, valoroso
e belo: o povo brasileiro. Reivindiquemos espaços!
Sejamos cidadãos do Brasil!
Eliana Caminada
é Orientadora e consultora, escreveu
vários livros sobre dança, e responde pelas disciplinas
História da Dança e Técnica de Ballet Clássico
no Centro Universitário da Cidade. Professora convidada no projeto
"Sons Dançados do Brasil" do Centro de Artes Calouste
Gulbenkian, colabora com o jornal "Dança, Arte & Ação"
e participa, como palestrante, jurada ou pedagoga, de festivais e mostras
de dança por todo o Brasil. Foi bailarina do "Corpo de Baile
do Theatro Municipal do Rio de Janeiro", primeira-bailarina do "Balé
Guairá" e solista do "Ballet da Ópera Estatal
de Munique".
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Ver
outros artigos da coluna
1.
Executantes, palavra muito usada no meio teatral.
2. O remontador é responsável
pela preservação das criações que compõem
o acervo de uma companhia de dança ou de um bailarino. De certa
forma cabe a ele a eternidade das obras que fazem a própria história
da dança.
3. Jean-Georges Noverre, criador do movimento
denominado "Ballet d'Action", figura de transcendental
importância que conferiu autonomia à dança cênica
ao chamar a atenção, pela primeira vez, sobre a necessidade
de uma ação conjunta de todos os elementos que entram num
espetáculo de dança.
4. Jean Coralli e Jules Perrot, expressões
máximas do estado de espírito romântico; coreógrafos
da maior criação do romantismo na dança, o ballet
"Giselle".
5. Marius Petipa conferiu ao ballet
acadêmico sua forma cênica definitiva merecendo de Stravinski
a afirmação de que, "na sua verdadeira essência,
na austeridade de suas formas, constitui-se no triunfo da ordem sobre
o arbítrio". Foi o criador dos paradigmáticos "A
Bela Adormecida" e "O Lago dos Cisnes" , ambos com música
de Piotr Ilich Tchaikovsky, entre inúmeros outros ballets
eternos.
6. Mikahil Fokine, criador do mais célebre
solo da história da dança: "A Morte do Cisne",
publicou, em 1914, os cinco princípios que revolucionaram, definitivamente,
o ballet como dança cênica.
7. Isadora Duncan, personalidade ímpar
na história da dança, foi a preconizadora da dança
livre e exerceu enorme influência sobre os criadores dos primeiros
grandes nomes do século XX.
8. Vaslav Nijinski, gênio que sustentou
a idéia de que cada movimento tem que ter sua razão de ser
ligada à idéia criadora, não hesitando, para isso,
em mexer nas posições acadêmicas de pés, ainda
que não abrisse mão de que uma técnica definida amparasse
tal ousadia, que, de forma pioneira, serviu-se da imobilidade, dos momentos
de silêncio, dos gestos angulosos, da concepção de
que a dança pode explicar o drama.
9. Agripina Vaganova, professora russa, cujo
método de ensino associado a alma dos povos do leste europeu produziu
os bailarinos russos, os maiores intérpretes do século.
10. Rudolf Laban, grande teórico do
movimento, criador do sistema de notação gráfica
Labanotation.
11. Martha Graham, figura ímpar da
dança moderna, deixou uma obra e uma técnica perenes e universais.
12. George Balanchine, o russo que traduzindo
em dança o povo norte-americano se tornou a maior referência
do ballet do Ocidente.
13. Maurice Béjart um dos mais fecundos
e populares criadores do século XX, que afirma, categoricamente,
que não se constrói o futuro sem os alicerces do passado
14. Kenneth MacMillan, o grande dramaturgo
do movimento, consolidou e deu projeção internacional ao
Royal Ballet de Londres.
15. Roland Petit, a maior expressão
da criação francesa de bases acadêmicas da França
do século XX., cuja criação, misto de tragédia
com champanhe, representa a síntese perfeita do povo francês.
16. Sathiagraha= apego à verdade,
palavra cunhada por Mahatma Gandhi para definir sua filosofia de vida.
Sathiagrahi é quem vive de acordo com esse princípio.
PS: Os nomes históricos sobre
os quais não existem notas de rodapé já figuraram
nos artigos precedentes.
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