Caro leitor.
Sei que quando você abriu esta página para ler o meu texto,
entre nós começou a estabelecer-se um diálogo. Não
há como evitar isso. Aliás, quem escreve busca esse diálogo,
essa interação. Raras são as vezes, no entanto, em
que há continuidade na conversa, chegando a efetuar-se uma troca
de mensagens como aconteceu neste caso.
Preciso situar os fatos. Tudo começou quando publiquei um texto
aqui no Portal da Família, sob o título: O banho do bebê.
Talvez fosse interessante que você, leitor, neste momento, lesse
aquela matéria. Mas prometa-me que voltará a esta nova publicação,
por favor! Ou teremos interrompido o nosso diálogo de hoje. Então,
vá ao artigo O
banho do bebê e volte.
Retomemos a conversa. Não sei que impressão O banho do
bebê causou em você, leitor, mas uma grande amiga minha
escreveu-me, num ímpeto de sinceridade, a seguinte mensagem:
Sueli, seu artigo é
muito sério, exige muita reflexão. As posições
das pessoas na sociedade nem sempre têm a ver conosco. Detesto
a idéia de cortar uma vida. E acredite, não sou religiosa
na acepção da palavra, não me considero intolerante
quanto a credos, aceito-os todos, desde que professados com fé
e bondade. Só para exemplificar, quando estive doente, como lhe
disse, uma conhecida muito boa pessoa quis me levar ao Parque da Cidade
para um rito de candomblé. Admiti, desde que não se sacrificasse
nada, nem galinha. Assim se fez, soltou-se um pombo e eu entrei naquela
água quase morna que, segundo explicava ela, tinha energia. Faz
sentido, água tem energia mesmo e a energia dela como pessoa
foi visivelmente boa, sua intenção era boa, o que me bastava.
Não fiquei nem pior, nem melhor, o que me curou foi o tempo e
um grande médico. Mas fiquei irritada e ofendida quando minha
cunhada - coitada, já morreu e era uma ótima pessoa -,
da Igreja de Nova Vida, quis que eu tirasse a Rosa Mística da
cabeceira. Me recusei, criei o que a garotada chama de "um clima"
e me recusei a atendê-la.
Então coloco para você, que tem muito mais experiência
do que eu em refletir sobre valores fundamentais: Se um feto tem anencefalia
- não sei se o nome certo é este mesmo - e coloca em risco
a vida da mãe sem ter qualquer chance de sobreviver, é
legítimo levar essa gravidez até o fim?
Tive uma amiga que casou cedo e teve quatro filhos. Ao engravidar pela
quinta vez estava cardíaca e o médico alertou-a de que
nem ela nem o bebê resistiriam à gravidez. O marido e o
filho mais velho chamaram um padre para convencê-la a interromper
a gravidez, não queriam perdê-la, o pai não se sentia
seguro para criar sozinho quatro filhos. O padre fortaleceu-a no sentido
contrário e ela não chegou ao sétimo mês
de gravidez. Faleceu deixando os quatro filhos. A partir de então
todos, não só rejeitaram a Igreja Católica, como
tornaram-se ateus. São até hoje, não acreditam
em outra vida, são a favor da interrupção desta
vida pela mera vontade de cada um. Hoje essa família acha que
essa é uma questão de fé que não lhes diz
respeito.
Como você mesma vê situações desse tipo? É
válido, será vontade de Deus que uma mãe deixe
quatro filhos, sem sequer conseguir salvar aquele bebê condenado
antes de nascer? É uma pergunta mesmo, é uma questão
que sempre surge na minha frente quando suponho que esteja esquecida.
Aliás foi seu artigo que me fez lembrar dela, até porque
o que está exposto não se parece nem com uma, nem com
outra situação. Mas estaria mentindo se não confessasse
que fico confusa, que não vejo nessas situações
a barbaridade proposta pela Fegali.
Por favor Sueli, responda-me.
Um abraço da Vera.
E eu lhe respondi, é claro. Era um apelo a que eu não podia
deixar de atender.
Querida Vera..
Gostaria de lhe ter respondido ontem mesmo, mas, devido ao horário,
tive de adiar e só agora retorno ao computador.
Talvez um dos grandes mal entendidos em relação à
Fé, à Religião, é que nós a entendemos
como recurso para resolver os nossos problemas na terra. Lançamos
mão da religião para fazer com que a vontade de Deus coincida
com a nossa. Às vezes coincide, às vezes não. Fé
é aceitar a vontade de Deus, mesmo que não nos fiquem
claros, dentro de nossa lógica humana, os rumos dos acontecimentos.
O problema é que a lógica de Deus é outra. A nossa,
sem fé, está limitada ao tempo e às suas vicissitudes;
com fé, adquire uma nova dimensão, própria de quem
tem a perspectiva da eternidade.
Achei engraçada a sua participação no ritual de
candomblé, as suas exigências quanto ao ritual... E eles
toparam! Daí você entrou na água para receber aquela
energia... Parece-me que tudo o que você procurou no ritual foram
coisas "naturais". Ou pelo menos você, perante si mesma,
justificou assim a sua condescendência em participar. Professar
uma fé está intimamente unido à consciência
e coerência de vida. Tanto é assim que, se uma pessoa acredita
que fazer uma transfusão de sangue ofende a Deus e, num momento
de risco de vida, por medo de morrer, consente numa transfusão,
ofende a Deus gravemente! Por isso é importante conhecer a Verdade
onde ela esteja melhor expressa. Até para não acrescentar
leis pesadas e desnecessárias à nossa consciência...
Outro dia eu ri muito com uma amiga que me escreveu dizendo que não
gostava de católicos que acham que a religião deles é
a melhor, a correta... Dizia como se me considerasse fora desse grupo,
digamos, presunçoso. E eu respondi, divertindo-me e esclarecendo,
que, se eu não considerasse que estou na Verdade, há muito
já teria caído fora! Isso não quer dizer que só
os católicos se salvam, embora todos se salvem através
da Igreja. Mas se é verdade que muitos caminhos levam a Deus,
há uns muito tortuosos... Resumindo: a Igreja é o caminho
mais fácil para chegar a Deus, devido à ajuda dos Sacramentos
instituídos por Jesus Cristo e que conferem a Graça. Olha,
Verinha, se isto é o fácil, imagino o difícil!
(Se você quiser, indico-lhe alguma leitura, ou escrevo mais sobre
isso.)
Agora o outro tema, mais espinhoso e que, parece-me, é a sua
principal preocupação. Gosto da sua sinceridade, Vera.
E agradeço a confiança. Vamos, se Deus quiser, esclarecer
isso de vez.
Em primeiro lugar o caso geral de anencefalia. Normalmente não
traz risco para a mãe. Deixando de lado que há muitos
casos de erros de diagnóstico, ou seja, partindo do pressuposto
de que o diagnóstico foi correto, a criança morrerá
logo depois de nascer, pois não tem cérebro. Creio que
o grande desgaste para a mãe, nesse caso, é psicológico.
Tanto como seria se, tendo nascido o seu bebê, soubesse, só
então, que ele tem uma doença incurável que o matará
em poucos meses. No segundo caso, ela não anteciparia a morte
da criança, não é? Nem no primeiro é lícito
fazê-lo. É preciso ver os fatos do ponto de vista da concepção
e não do nascimento para a luz. Está achando que isso
é duro? Antigamente não era possível saber e a
gravidez ia naturalmente até o final. Aqui no prédio tivemos
recentemente a morte de uma nenen, cujo nascimento a Mirian (minha filha)
estava aguardando com certa ansiedade. A criança morreu poucas
horas antes de a mãe, jovem ainda, entrar em trabalho de parto.
E não era anencefálica. É que a vida, Vera, não
está em nossas mãos. Nunca! (Não sei se já
lhe contei, se já, desculpe o repeteco: a Mirian foi gravidez
de risco. Eu quase havia perdido o útero ao retirar miomas, ainda
solteira. Só não perdi o útero porque estava acordada
e insisti com o médico que deixasse como fosse possível,
apesar de ouvir o assistente reclamar, contrariado. Casei-me oito meses
depois e engravidei em seguida. Ao tirar a Mirian, necessariamente numa
cesariana, o médico disse-me que o útero estava grosso
e que eu poderia ter todos os filhos que quisesse. Depois disso, abortei
três, sem explicação).
Considere também que os casos de anencefalia são muito
raros. Participei de uma mesa redonda, creio que em 1995, e um médico
fez um tipo de denúncia. Comentou que ao longo de seus quase
trinta anos de exercício profissional como obstetra ele deparara
com um único caso de anencefalia, mas que um colega dele já
fizera na sua Clínica, em pouquíssimos anos, mais de duzentos
abortos de anencefálicos... Seriam mesmo anencefálicos?
E para concluir, quero comentar esse caso, tão triste, da mãe
que morreu durante a gravidez do quinto filho. Em primeiro lugar, a,
a família não perdeu a fé. Não podia perder
o que não tinha. Desculpe a franqueza, mas é duro constatar
que o marido e o filho tenham pretendido que o padre convencesse a mãe
a abortar... Nem é provável que a mãe só
corresse risco por causa da gravidez. Talvez tivesse morrido logo depois,
mesmo sem ter levado a gravidez avante. Quem sabe? O que essa mulher
deu foi uma grande prova de amor ao filho menor, que podemos entender,
era reflexo do amor que tinha aos outros quatro. Se ela tivesse abortado
e sobrevivesse, teria paz? Não estaria o tempo todo questionando-se
sobre a necessidade de ter feito o que fez?
Não é incomum que as pessoas percam a fé diante
de um acontecimento doloroso. O que esperamos nesses casos, Vera? Imagine
a seguinte situação no mundo: todos os católicos
que vivessem coerentemente com a sua fé estariam livres de acidentes,
desgraças, falências... Ia ter católico na China
inteira! Seríamos católicos até debaixo d'água,
e sem risco de morrermos afogados. Pois é, mas a realidade é
outra. A fé se prova na contrariedade, na dificuldade, na dor.
Conto-lhe três casos: um deles muito parecido com esse seu, mas
nunca se cogitou de aborto. A Silvana engravidou do sexto filho e lá
pelo terceiro mês diagnosticaram-lhe uma doença rara que
provocava hemorragias internas. Chegou a fazer uma cirurgia delicada
para retirar um coágulo do pulmão. A família, desde
o marido, sogro e etc. médicos, reviraram o mundo e descobriram
algum remédio que dava uma certa sobrevida e que no caso dela
foi usado com cautela, em vista da gravidez. O parto foi antecipado
porque o estado da Silvana agravou-se e tentou-se salvar a nenen e atacar
em seguida a doença da mãe. A nenen era muito frágil
e faleceu, inclusive porque houve uma queda de energia no Hospital (de
altíssimo nível) e os aparelhos da UTI tiveram uma breve
pane, o que complicou o estado da pequena. Foi seguida da mãe,
um ou dois meses depois. Já a Regina, depois de três filhos,
deu de perder os nenens, que morriam lá pelo quinto mês.
Na última gravidez, conseguiram diagnosticar um processo de coagulação
que levava o nenen à morte. Para evitar isso, ela foi tratada
com anticoagulantes, o que a deixava em risco de ter hemorragia, principalmente
no parto... Mas tudo correu bem, a nenen está ótima.
Para finalizar, a Sônia tinha cinco filhos quando se manifestou,
no seu jovem marido, um câncer linfático. Tratou com forte
quimioterapia e ficou bem. Não sei se você sabe que quimioterapia
esteriliza o homem. Pois ele ficou tão bem que voltou a ser fértil,
e eles comemoraram a sexta gravidez. Já com a gestação
da mulher avançada, o câncer do marido voltou. Esgotados
os recursos no Brasil, isso foi há uns quinze anos, o rapaz foi
tratar-se nos EEUU, sem que a mulher pudesse acompanhá-lo. Justamente
ela que me havia dito, uns dois anos antes a respeito de um amigo meu
que fora tratar-se lá: "A mulher dele não foi? Pois
eu iria nem que fosse na mala! Você não imagina o que é
um tratamento desses!" Pois o parto da Sônia foi antecipado
em alguns dias para que se pudesse dar a ela a notícia de que
o marido estava morrendo na Califórnia. O nenen nasceu no dia
18 de março e a mãe pôs-lhe o nome de José.
Até hoje essa história me comove muito. Pois ela criou
os seus filhos sozinha; o José está hoje com 14 anos.
E se há algo que a família não perdeu foi a fé,
porque até o dinheiro foi, em boa parte, embora, com o tratamento
inútil do pai.
Quero dizer, em suma, Vera, que esta vida é dura. Que Cristo
morreu na Cruz para dizer que Deus sabe o que é o sofrimento
humano. Não pretendia dizer-nos que nos livraria da dor, mas
que estaria ao nosso lado para levar a nossa Cruz, quando o permitíssemos.
A dor desses filhos e desse pai, hoje, é a dor da solidão.
Não souberam, ainda, perceber que a sua mãe está
mais perto deles do que nunca e que ela teria morrido por qualquer um
deles também, da mesma forma como morreu pelo menor.
Vera, quando você olhar para esta vida, nunca perca a perspectiva
da eternidade. Porque isto é muito pouco. Por outro lado, aprenda
a rezar, procure ter um relacionamento muito pessoal com Deus, talvez
através de Nossa Senhora, a sua Rosa Mística. Só
essa vivência nos ensina a ver a vida através dos olhos
de Deus e começamos a compreender melhor os tais valores que
normalmente pressentimos, (e isso nos inquieta, o que é muito
bom!), mas nem sempre penetramos. Não consigo imaginar maior
desastre do que aquele presenciado por Nossa Senhora: o filho morrendo
na Cruz, os apóstolos fugindo... Ah! Claro! Peça a Deus,
Fé. Todos a temos, pois a recebemos no Batismo, mas é
uma semente que pode ser apenas um grão de mostarda, ou tornar-se
árvore frondosa, onde todos encontrarão abrigo.
Qualquer dúvida não hesite em escrever-me. Desculpe-me
por ter-me alongado, mas achei que o assunto merecia.
Um grande beijo.
Sueli
Algumas horas depois, veio-me a resposta que reproduzo
a seguir.
Querida Sueli, você precisa publicar esse
artigo que me escreveu. Me fez muito bem, não há nem como
avaliar. Fico mesmo, muitas vezes, dividida entre minha inclinação
natural e os argumentos invocados por tanta gente. Fico com sua razão,
com sua fé, esperando ampliar a minha própria fé,
tão pouco sólida. Precisamos crer para ter Paz, isso é
mais do que claro.
Obrigada, é só o que posso responder. Vera.
Motivada por essas palavras, resolvi publicar este
diálogo, na esperança de que ajude a refletir sobre as riquezas
da fé. Concluiu bem a minha amiga: Precisamos crer para ter
Paz.
E vamos em frente!
Sueli Caramello Uliano - 17/0404
Sueli Caramello Uliano , mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela
Universidade de São Paulo, Presidente
do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para
assuntos de adolescência e educação.
É autora do livro Por
um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações
Culturais.
e-mail: scaramellu@terra.com.br
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