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Coluna "A prosa heróica de cada dia"

Tentando esclarecer as suas dúvidas
(Um diálogo via Internet)

Sueli Caramello Uliano



Caro leitor.

Sei que quando você abriu esta página para ler o meu texto, entre nós começou a estabelecer-se um diálogo. Não há como evitar isso. Aliás, quem escreve busca esse diálogo, essa interação. Raras são as vezes, no entanto, em que há continuidade na conversa, chegando a efetuar-se uma troca de mensagens como aconteceu neste caso.


Preciso situar os fatos. Tudo começou quando publiquei um texto aqui no Portal da Família, sob o título: O banho do bebê. Talvez fosse interessante que você, leitor, neste momento, lesse aquela matéria. Mas prometa-me que voltará a esta nova publicação, por favor! Ou teremos interrompido o nosso diálogo de hoje. Então, vá ao artigo O banho do bebê e volte.

Retomemos a conversa. Não sei que impressão O banho do bebê causou em você, leitor, mas uma grande amiga minha escreveu-me, num ímpeto de sinceridade, a seguinte mensagem:

Sueli, seu artigo é muito sério, exige muita reflexão. As posições das pessoas na sociedade nem sempre têm a ver conosco. Detesto a idéia de cortar uma vida. E acredite, não sou religiosa na acepção da palavra, não me considero intolerante quanto a credos, aceito-os todos, desde que professados com fé e bondade. Só para exemplificar, quando estive doente, como lhe disse, uma conhecida muito boa pessoa quis me levar ao Parque da Cidade para um rito de candomblé. Admiti, desde que não se sacrificasse nada, nem galinha. Assim se fez, soltou-se um pombo e eu entrei naquela água quase morna que, segundo explicava ela, tinha energia. Faz sentido, água tem energia mesmo e a energia dela como pessoa foi visivelmente boa, sua intenção era boa, o que me bastava. Não fiquei nem pior, nem melhor, o que me curou foi o tempo e um grande médico. Mas fiquei irritada e ofendida quando minha cunhada - coitada, já morreu e era uma ótima pessoa -, da Igreja de Nova Vida, quis que eu tirasse a Rosa Mística da cabeceira. Me recusei, criei o que a garotada chama de "um clima" e me recusei a atendê-la.

Então coloco para você, que tem muito mais experiência do que eu em refletir sobre valores fundamentais: Se um feto tem anencefalia - não sei se o nome certo é este mesmo - e coloca em risco a vida da mãe sem ter qualquer chance de sobreviver, é legítimo levar essa gravidez até o fim?

Tive uma amiga que casou cedo e teve quatro filhos. Ao engravidar pela quinta vez estava cardíaca e o médico alertou-a de que nem ela nem o bebê resistiriam à gravidez. O marido e o filho mais velho chamaram um padre para convencê-la a interromper a gravidez, não queriam perdê-la, o pai não se sentia seguro para criar sozinho quatro filhos. O padre fortaleceu-a no sentido contrário e ela não chegou ao sétimo mês de gravidez. Faleceu deixando os quatro filhos. A partir de então todos, não só rejeitaram a Igreja Católica, como tornaram-se ateus. São até hoje, não acreditam em outra vida, são a favor da interrupção desta vida pela mera vontade de cada um. Hoje essa família acha que essa é uma questão de fé que não lhes diz respeito.

Como você mesma vê situações desse tipo? É válido, será vontade de Deus que uma mãe deixe quatro filhos, sem sequer conseguir salvar aquele bebê condenado antes de nascer? É uma pergunta mesmo, é uma questão que sempre surge na minha frente quando suponho que esteja esquecida. Aliás foi seu artigo que me fez lembrar dela, até porque o que está exposto não se parece nem com uma, nem com outra situação. Mas estaria mentindo se não confessasse que fico confusa, que não vejo nessas situações a barbaridade proposta pela Fegali.
Por favor Sueli, responda-me.
Um abraço da Vera.


E eu lhe respondi, é claro. Era um apelo a que eu não podia deixar de atender.

Querida Vera..

Gostaria de lhe ter respondido ontem mesmo, mas, devido ao horário, tive de adiar e só agora retorno ao computador.

Talvez um dos grandes mal entendidos em relação à Fé, à Religião, é que nós a entendemos como recurso para resolver os nossos problemas na terra. Lançamos mão da religião para fazer com que a vontade de Deus coincida com a nossa. Às vezes coincide, às vezes não. Fé é aceitar a vontade de Deus, mesmo que não nos fiquem claros, dentro de nossa lógica humana, os rumos dos acontecimentos. O problema é que a lógica de Deus é outra. A nossa, sem fé, está limitada ao tempo e às suas vicissitudes; com fé, adquire uma nova dimensão, própria de quem tem a perspectiva da eternidade.

Achei engraçada a sua participação no ritual de candomblé, as suas exigências quanto ao ritual... E eles toparam! Daí você entrou na água para receber aquela energia... Parece-me que tudo o que você procurou no ritual foram coisas "naturais". Ou pelo menos você, perante si mesma, justificou assim a sua condescendência em participar. Professar uma fé está intimamente unido à consciência e coerência de vida. Tanto é assim que, se uma pessoa acredita que fazer uma transfusão de sangue ofende a Deus e, num momento de risco de vida, por medo de morrer, consente numa transfusão, ofende a Deus gravemente! Por isso é importante conhecer a Verdade onde ela esteja melhor expressa. Até para não acrescentar leis pesadas e desnecessárias à nossa consciência...

Outro dia eu ri muito com uma amiga que me escreveu dizendo que não gostava de católicos que acham que a religião deles é a melhor, a correta... Dizia como se me considerasse fora desse grupo, digamos, presunçoso. E eu respondi, divertindo-me e esclarecendo, que, se eu não considerasse que estou na Verdade, há muito já teria caído fora! Isso não quer dizer que só os católicos se salvam, embora todos se salvem através da Igreja. Mas se é verdade que muitos caminhos levam a Deus, há uns muito tortuosos... Resumindo: a Igreja é o caminho mais fácil para chegar a Deus, devido à ajuda dos Sacramentos instituídos por Jesus Cristo e que conferem a Graça. Olha, Verinha, se isto é o fácil, imagino o difícil! (Se você quiser, indico-lhe alguma leitura, ou escrevo mais sobre isso.)

Agora o outro tema, mais espinhoso e que, parece-me, é a sua principal preocupação. Gosto da sua sinceridade, Vera. E agradeço a confiança. Vamos, se Deus quiser, esclarecer isso de vez.

Em primeiro lugar o caso geral de anencefalia. Normalmente não traz risco para a mãe. Deixando de lado que há muitos casos de erros de diagnóstico, ou seja, partindo do pressuposto de que o diagnóstico foi correto, a criança morrerá logo depois de nascer, pois não tem cérebro. Creio que o grande desgaste para a mãe, nesse caso, é psicológico. Tanto como seria se, tendo nascido o seu bebê, soubesse, só então, que ele tem uma doença incurável que o matará em poucos meses. No segundo caso, ela não anteciparia a morte da criança, não é? Nem no primeiro é lícito fazê-lo. É preciso ver os fatos do ponto de vista da concepção e não do nascimento para a luz. Está achando que isso é duro? Antigamente não era possível saber e a gravidez ia naturalmente até o final. Aqui no prédio tivemos recentemente a morte de uma nenen, cujo nascimento a Mirian (minha filha) estava aguardando com certa ansiedade. A criança morreu poucas horas antes de a mãe, jovem ainda, entrar em trabalho de parto. E não era anencefálica. É que a vida, Vera, não está em nossas mãos. Nunca! (Não sei se já lhe contei, se já, desculpe o repeteco: a Mirian foi gravidez de risco. Eu quase havia perdido o útero ao retirar miomas, ainda solteira. Só não perdi o útero porque estava acordada e insisti com o médico que deixasse como fosse possível, apesar de ouvir o assistente reclamar, contrariado. Casei-me oito meses depois e engravidei em seguida. Ao tirar a Mirian, necessariamente numa cesariana, o médico disse-me que o útero estava grosso e que eu poderia ter todos os filhos que quisesse. Depois disso, abortei três, sem explicação).

Considere também que os casos de anencefalia são muito raros. Participei de uma mesa redonda, creio que em 1995, e um médico fez um tipo de denúncia. Comentou que ao longo de seus quase trinta anos de exercício profissional como obstetra ele deparara com um único caso de anencefalia, mas que um colega dele já fizera na sua Clínica, em pouquíssimos anos, mais de duzentos abortos de anencefálicos... Seriam mesmo anencefálicos?

E para concluir, quero comentar esse caso, tão triste, da mãe que morreu durante a gravidez do quinto filho. Em primeiro lugar, a, a família não perdeu a fé. Não podia perder o que não tinha. Desculpe a franqueza, mas é duro constatar que o marido e o filho tenham pretendido que o padre convencesse a mãe a abortar... Nem é provável que a mãe só corresse risco por causa da gravidez. Talvez tivesse morrido logo depois, mesmo sem ter levado a gravidez avante. Quem sabe? O que essa mulher deu foi uma grande prova de amor ao filho menor, que podemos entender, era reflexo do amor que tinha aos outros quatro. Se ela tivesse abortado e sobrevivesse, teria paz? Não estaria o tempo todo questionando-se sobre a necessidade de ter feito o que fez?

Não é incomum que as pessoas percam a fé diante de um acontecimento doloroso. O que esperamos nesses casos, Vera? Imagine a seguinte situação no mundo: todos os católicos que vivessem coerentemente com a sua fé estariam livres de acidentes, desgraças, falências... Ia ter católico na China inteira! Seríamos católicos até debaixo d'água, e sem risco de morrermos afogados. Pois é, mas a realidade é outra. A fé se prova na contrariedade, na dificuldade, na dor.

Conto-lhe três casos: um deles muito parecido com esse seu, mas nunca se cogitou de aborto. A Silvana engravidou do sexto filho e lá pelo terceiro mês diagnosticaram-lhe uma doença rara que provocava hemorragias internas. Chegou a fazer uma cirurgia delicada para retirar um coágulo do pulmão. A família, desde o marido, sogro e etc. médicos, reviraram o mundo e descobriram algum remédio que dava uma certa sobrevida e que no caso dela foi usado com cautela, em vista da gravidez. O parto foi antecipado porque o estado da Silvana agravou-se e tentou-se salvar a nenen e atacar em seguida a doença da mãe. A nenen era muito frágil e faleceu, inclusive porque houve uma queda de energia no Hospital (de altíssimo nível) e os aparelhos da UTI tiveram uma breve pane, o que complicou o estado da pequena. Foi seguida da mãe, um ou dois meses depois. Já a Regina, depois de três filhos, deu de perder os nenens, que morriam lá pelo quinto mês. Na última gravidez, conseguiram diagnosticar um processo de coagulação que levava o nenen à morte. Para evitar isso, ela foi tratada com anticoagulantes, o que a deixava em risco de ter hemorragia, principalmente no parto... Mas tudo correu bem, a nenen está ótima.

Para finalizar, a Sônia tinha cinco filhos quando se manifestou, no seu jovem marido, um câncer linfático. Tratou com forte quimioterapia e ficou bem. Não sei se você sabe que quimioterapia esteriliza o homem. Pois ele ficou tão bem que voltou a ser fértil, e eles comemoraram a sexta gravidez. Já com a gestação da mulher avançada, o câncer do marido voltou. Esgotados os recursos no Brasil, isso foi há uns quinze anos, o rapaz foi tratar-se nos EEUU, sem que a mulher pudesse acompanhá-lo. Justamente ela que me havia dito, uns dois anos antes a respeito de um amigo meu que fora tratar-se lá: "A mulher dele não foi? Pois eu iria nem que fosse na mala! Você não imagina o que é um tratamento desses!" Pois o parto da Sônia foi antecipado em alguns dias para que se pudesse dar a ela a notícia de que o marido estava morrendo na Califórnia. O nenen nasceu no dia 18 de março e a mãe pôs-lhe o nome de José. Até hoje essa história me comove muito. Pois ela criou os seus filhos sozinha; o José está hoje com 14 anos. E se há algo que a família não perdeu foi a fé, porque até o dinheiro foi, em boa parte, embora, com o tratamento inútil do pai.

Quero dizer, em suma, Vera, que esta vida é dura. Que Cristo morreu na Cruz para dizer que Deus sabe o que é o sofrimento humano. Não pretendia dizer-nos que nos livraria da dor, mas que estaria ao nosso lado para levar a nossa Cruz, quando o permitíssemos. A dor desses filhos e desse pai, hoje, é a dor da solidão. Não souberam, ainda, perceber que a sua mãe está mais perto deles do que nunca e que ela teria morrido por qualquer um deles também, da mesma forma como morreu pelo menor.

Vera, quando você olhar para esta vida, nunca perca a perspectiva da eternidade. Porque isto é muito pouco. Por outro lado, aprenda a rezar, procure ter um relacionamento muito pessoal com Deus, talvez através de Nossa Senhora, a sua Rosa Mística. Só essa vivência nos ensina a ver a vida através dos olhos de Deus e começamos a compreender melhor os tais valores que normalmente pressentimos, (e isso nos inquieta, o que é muito bom!), mas nem sempre penetramos. Não consigo imaginar maior desastre do que aquele presenciado por Nossa Senhora: o filho morrendo na Cruz, os apóstolos fugindo... Ah! Claro! Peça a Deus, Fé. Todos a temos, pois a recebemos no Batismo, mas é uma semente que pode ser apenas um grão de mostarda, ou tornar-se árvore frondosa, onde todos encontrarão abrigo.

Qualquer dúvida não hesite em escrever-me. Desculpe-me por ter-me alongado, mas achei que o assunto merecia.
Um grande beijo.
Sueli

Algumas horas depois, veio-me a resposta que reproduzo a seguir.

Querida Sueli, você precisa publicar esse artigo que me escreveu. Me fez muito bem, não há nem como avaliar. Fico mesmo, muitas vezes, dividida entre minha inclinação natural e os argumentos invocados por tanta gente. Fico com sua razão, com sua fé, esperando ampliar a minha própria fé, tão pouco sólida. Precisamos crer para ter Paz, isso é mais do que claro.
Obrigada, é só o que posso responder. Vera.

Motivada por essas palavras, resolvi publicar este diálogo, na esperança de que ajude a refletir sobre as riquezas da fé. Concluiu bem a minha amiga: Precisamos crer para ter Paz.
E vamos em frente!


Sueli Caramello Uliano - 17/0404


Sueli Caramello Uliano , mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela Universidade de São Paulo, Presidente do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para assuntos de adolescência e educação.

É autora do livro Por um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais.

e-mail: scaramellu@terra.com.br

 

 


 

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