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Coluna "A prosa heróica de cada dia"

B e n e v o l ê n c i a

Sueli Caramello Uliano

"a Vida humana, que se forma no seio da mãe, já é um novo sujeito de direitos e, por isso, tal vida deve ser respeitada sempre, não importando o estágio ou a condição em que ela se encontre." (*)

Impressionava-me muito a ilustração de página inteira na revista Grande Hotel. A mulher no trenó, com um bebê nos braços, assustada... Via-se o pavor nos seus olhos... Os cães num esforço extremo, puxando o trenó que desliza sobre a neve. E no encalço deles, a poucos metros, os lobos famintos. Minha mãe me explicava, já que eu não sabia ler, o que a ilustração apenas sugeria: ao perceber que a alcatéia ia alcançar o trenó, a mãe deixara o bebê em segurança e atirara-se aos lobos. Com isso, os cães ganharam vantagem, puxando menos peso...

Ai, como aquilo me doía! Pobre mãezinha! Pensava logo na minha, a quem eu não queria que se atirasse aos lobos nem por mim nem por ninguém. Tranqüilizava-me, no entanto, saber que aquela paisagem de neve era algo distante, que eu não conhecia, com a qual não convivia. Lobos não eram também uma ameaça que eu pudesse pressentir. Logo aprendi a dizer “Viva o Brasil!” sem neve, sem vulcões, sem terremotos. Talvez lamentasse a falta do trenó.

Por estes dias lembrei-me dessa história, que a revista apresentava como um fato real, e imaginei uma nova versão, politicamente correta. A mãe aflita quer salvar o seu bebê. E quer, naturalmente, salvar-se também. Um grande medo a aflige, o instinto de sobrevivência a atordoa. Pensa no seu neném e pensa também nos seus outros filhos e no seu marido... E, para salvar-se, tendo em vista o grande valor da sua própria vida para tantos, joga o neném para longe, com a maior força possível... Os lobos precipitam-se disputando a isca e por uns instantes distraem-se com a pequena presa. O trenó ganha distância...

Que horror!

Qualquer pessoa com mínima noção de humanidade revolta-se diante da minha irônica, feroz e sangrenta versão. E há que se admitir que parece improvável, impossível... Nenhuma mãe agiria assim. No entanto, de repente, no horror de ser dilacerada junto com a criança, a mãe, que tem consciência dos fatos, pensará que o neném não sabe o que está acontecendo, tudo será muito rápido, já que ele é tão pequeno e será estraçalhado em segundos...

Que horror!

Considerem que essa mãe voltará para os outros filhos, para o marido, para a sua própria mãe se ainda a tem... e poderá encará-los com a segurança de que, se não tivesse lançado o neném, ela não estaria lá. Emocionante reencontro. Todos chorarão, com benevolência, o neném martirizado, mas a vida às vezes é tão injusta, as circunstâncias são tão difíceis de avaliar, principalmente quando a aflição nos atordoa. Ninguém pensará que os dois poderiam ter-se salvado numa ladeira qualquer ou porque surgiriam caçadores... Isso será assunto proibido, pois poderia provocar um grande desgaste psicológico para essa mãe já tão destruída. Além de que pode ser que esse neném já fosse o sexto filho numa família de baixa renda.

Que horror!

Também é muito provável que a morte do neném não chegasse a ser suficiente para salvar a mãe, os lobos continuariam vorazes no seu encalço. Estes, ou quaisquer outros lobos... Que lobo é o que não falta e a morte é certa, cedo ou tarde.

A morte é certa para a mãe e para o bebê, para os outros filhos e para o marido, e é certa também para os cães e para os lobos. Ela, a iniludível, é o ponto de chegada de todos os trenós. Ainda que possa variar a extensão do percurso.

Volto à minha leitura, na infância: lembrei-me dessa história, lendo a respeito da lei que permite o aborto em caso de risco de vida para a mãe ou em caso de estupro, e refletindo sobre a legalização da interrupção da gravidez quando o feto é anencefálico. Conjecturas daqui e dali, mãe e neném no trenó: quem se joga? a quem se joga? por que se joga? onde se joga?

Que horror!

Será mesmo possível fazer estas conjecturas?

A propósito da lei que autoriza abortos de crianças geradas em ato de estupro, sempre me lembro da fábula do lobo e o cordeiro. “Se não foi você, foi seu pai” – esta é a justificativa que o lobo dá para devorar o cordeiro.

Profissionais de saúde e ministros de estado acusam a Igreja de intrometer-se e querer impor sua orientação religiosa às leis do Estado. Senhores, nada é mais laical do que um trenó puxado por cães e perseguido por lobos. O que admira é que só a Igreja se manifeste a favor de que o trenó siga o seu curso: atitude sensata e menos traumática.

Concluído o trânsito doloroso, a mãe terá certeza de que deu ao filho tudo o que lhe podia dar; manteve-o vivo enquanto isso dependia dela. Pode ser que em algum caso raro, e muitas vezes imprevisível, ela dê a vida pelo filho. Nada é mais trivial e laical do que mães que se esfolam para que os filhos vivam bem. Que leis são essas, de Estado laical, que pretendem que se esfolem os filhos para consolar as mães?

A Igreja não inventou a morte, nem inventou o sofrimento, nem pôs em marcha o trenó, nem incitou os lobos. E nem está sendo irresponsável ao afirmar e defender que a vida começa na concepção. Muitas vozes na comunidade científica, no campo da genética e medicina reprodutiva, também se levantam em favor da vida intra-uterina. E puxam pelo trenó, num esforço extremo. O que admira é que cientistas e profissionais de saúde pressionem ministros de estado a avaliar qual vida vale mais. E aprovem leis que permitem jogar “migalhas” aos lobos.

O trenó desliza, no entanto, iniludível... A dignidade humana cambaleia, ameaçada pela cultura da morte que se disfarça de benevolente. Mas benevolência é outra coisa... Benevolência é o esforço consciente de ajudar cada um a chegar até o fim do percurso, com todo respeito e carinho diante de circunstâncias mais difíceis, porém sem abrir mão de princípios fundamentais de defesa da vida.

Outra atitude é demagogia que, muito longe de possibilitar a paz, envenena a paz na raiz, pois contraria os anseios nobres do coração humano.





Sueli Caramello Uliano - 03/07/2004


Sueli Caramello Uliano , mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela Universidade de São Paulo, Presidente do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para assuntos de adolescência e educação.

É autora do livro Por um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais.

e-mail: scaramellu@terra.com.br


 

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