Portal da Família
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Valores
de ponta Sueli Caramello Uliano |
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Um dia de junho, chuvoso. No fim da manhã, ela foi buscar a filha que fazia ensaio de balé, marcação de palco... Era possível entrar pelo portão do colégio onde ficava o teatro, circular o jardim de modo a alcançar a porta principal, mas não havia espaço para estacionar. E as bailarinas estavam lá dentro! Teve de parar atrapalhando o trânsito, correr até o saguão, chamar a filha de seis anos que ensaiava a sua primeira apresentação na meia ponta. Voltou para o carro aflita e saiu apressada. Já na rua, lembrou-se do cinto de segurança e estendeu o braço para apanhá-lo. Deve ter desviado o olhar minimamente do trânsito, o carro da frente parou, e ela viu-se, e ouviu-se!, batendo. Só faltava! Atrasada para o almoço, a menina com o horário da escola espremido, garoa forte. Desceu no maior desânimo e contemplou o pára-choque dianteiro do seu Vectra CD encostado no pára-choque traseiro do fusquinha branco. - Amassou! - lamentava o dono do fusca, sacudindo os braços no ar. De fato! Ela só não sabia qual dos amassados tinha sido feito por ela ! Mas batera atrás, sabia as regras. A filha assustara-se vendo aquele homem reclamando com a sua mãe; o filho do dono do fusca choramingava ao lado do pai, na chuva. Ela sugeriu que entrassem no posto, ali na esquina, para conversar. Negociaram rapidamente, ela cedeu e deu o cheque, vendo-se na iminência de comprar o fusquinha. Voltou para o carro resmungando para si e para a filha. "Pára-choque!!! Sabe quando ele vai trocar esse pára-choque? Dureza vai ser agüentar o teu pai!" - Amassou muito o nosso? - a menina doía-se. - Ahn? Bem... nem reparei direito. Nem dava para ficar olhando, embaixo de chuva. Alguma marca deve ter feito. Mas o teu pai vai ver, também, a marca no talão de cheques. - Será que ele vai ficar muito brabo? - Paciência, filha! O que eu podia fazer? Estou o tempo todo correndo contra o relógio. Uma hora a gente capota, mesmo! - Capota? - Não, não capotamos! Melhor assim: foi só uma encostada. Eu me entendo com o teu pai, não se preocupe, ele não é nenhum monstro. Passou a sexta-feira com apresentação de balé sem a presença do pai, que estava trabalhando. No sábado à tarde, marido e mulher na cozinha, no primeiro momento de calmaria após o episódio: - Sabe que eu fiz uma bobagem? - era o pai quem falava. - Ontem, ao guardar os carros, eu pus o Vectra atrás e quando estacionei o Scort na frente acabei encostando o Scort no Vectra. Já fiz muitas vezes o contrário, sem problemas... Pois acho que o Scort é mais baixo, não sei... Sabe que marcou? Que besteira! Marquei o pára-choque do Vectra, acho que vai precisar pintar inteiro - e bufava desconsolado. A mulher segurou uma gargalhada nos lábios, com as pontas dos dedos. Mas o rosto inteiro era uma gargalhada!!! E o marido ouviu a versão original da esfolada. - Se eu quisesse, agora me livrava! - ela ria-se e brincava com ele. - Seu bobo! Não foi você! Fui eu! Dispensado da culpa, ele ficou desarmado para a bronca. Afinal, podia ter acontecido com qualquer um... Até mesmo com ele! E ela, ainda surpresa, avaliava os fatos. Havia-se sentido tão desamparada na hora do acidente, tão solitária, ensopando-se no "onde foi que eu errei?", na angústia de não se ter organizado melhor para não ter de correr tanto, ou sabe-se lá... E agora, se não se sentia inocentada, sentia-se compreendida. Parecia-lhe que os fatos se reorganizavam, que a vida se redefinia num novo bailado, ao som de uma nova música... Que alívio! Pouco depois... - Não vejo a hora de dançar na ponta! - a filha comentava enquanto comia um lanche na cozinha. - Nem te conto o que aconteceu! - a mãe sussurrava sorrateiramente, como quem não quer ser ouvida. - Olha só o que o teu pai me falou agorinha - e contou para a menina a confusão do pai, omitindo a parte final da conversa com o marido. - Me livrei! - concluía. - Nem acredito que o teu pai acha que foi ele! Mas melhor assim! Escrevo qualquer coisa no talão de cheques e não se fala mais nisso. A menina parou de mastigar, a boca entreaberta. A mãe movimentava-se tentando agir com naturalidade, esperando a reação. - Você não vai contar? - a menina tinha os olhos mais abertos do que a boca. - E eu sou boba? - a mãe persistia na interpretação. - Deu tudo tão certo! Ao invés de eu levar uma bronca... E ninguém sai perdendo, ora essa! - e movimentava-se numa arrumação de coisas forçada, para disfarçar a vontade de rir. - Eu acho que você devia contar... - a voz triste já implorava. - Por quê??? - Porque... ah! Porque é chato fazer assim. Não é bem que você mentiu, mas... - e a decepção era patente e arrasadora. A mãe se pôs a rir e deixou cair a máscara. - Estou brincando com você, filha! É claro que eu contei! Mas que a confusão foi engraçada, isso foi! Que coincidência! - E ele ficou brabo? - Disse para eu prestar mais atenção. O assunto acabou ficando engraçado, ainda mais que ele percebeu que eu podia ter ficado quieta e ele nem saberia a verdade... - Mas eu achei melhor que você falou... - a menina hesitava, sem compreender os próprios sentimentos. - Filha, o que vale mais? Evitar um mau momento com uma mentira ou um engano, ou admitir os nossos erros e falar sinceramente? Ou as pessoas são sinceras, ou não são. E a pequena meneou a cabeça e os ombros para tão óbvia resposta. E voltou ao tema anterior: - Não vejo a hora de dançar na ponta, mãe! - Está mesmo animada com o balé? Será que você vai mesmo continuar? - Bom, eu estou pensando, mesmo, em dançar na Alemanha, na Áustria... E diante do olhar interrogante da mãe, completou: - Mas deixa quieto! Não conta nada pro meu pai... Quer dizer: não conta nada pro meu pai... ainda!
Sueli Caramello Uliano , mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela Universidade de São Paulo, Presidente do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para assuntos de adolescência e educação. É autora do livro Por um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais. e-mail: scaramellu@terra.com.br |
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