"A máscara, em sua fantasia selvagem e exuberante,
freqüentemente não parece algo sagrado ou espiritualmente
elevado; ao contrário, sua deformação chega à
beira do ridículo, sem esquecer, que a mistura de idéias
intuitivas com outras simplesmente grotescas constitui-se numa característica
das experiências do subconsciente".
Continuando nossa história, abordamos
nesse artigo a análise da dança de acordo com os temas e
tipos.
Infinitos são os temas abordados pela
dança. Qualquer acontecimento, importante ou rotineiro, justifica
a manifestação dançada. Para o homem primitivo os
temas de dança eram, em sua essência, àqueles ligados
à vida e à sobrevivência: força, luta, fertilidade,
fecundidade, saúde, doença, etc.
Esses temas podem ser representados por três
tipos de dança: abstrata, imagética ou mesclada de ambos
os tipos.
As danças imagéticas, miméticas
ou imitativas, resultam da observação do mundo exterior
e da tentativa de imitá-lo. Extrovertida, patriarcal e sensorial,
a dança com imagem se originou da idéia de que a imitação
um gesto ou atitude gesto eram suficientes para incorporar um poder e
torná-lo útil. De acordo com essa concepção,
quando o homem que imitava os animais, por exemplo, além de se
identificar com eles e incorporá-los, conseguia reconhecer sua
importância para a sobrevivência de todos.
Todos os povos que caçam têm prazer
em dançar. Algumas tribos acreditam, até hoje, possuir vínculos
sangüíneos com bichos: os totens. Em geral, a dança
animal é masculina, mas certos movimentos podem ter origem em impulsos
femininos. A estilização gradual dos movimentos da dança
animal destorceu a tal ponto a naturalidade, que a imitação,
não mais reconhecível, tornou-se uma abstração.
Como exemplos de danças de imagem relacionamos:
- Danças de fecundidade. Ligadas
à agricultura, embora estiveram, de início, associadas
às mulheres, só se desenvolveram nas culturas agrícolas
quando o homem assumiu o trabalho no campo. Devem ser entendidas considerando
que para mentes primitivas, o sexo não existia (e) associado
a idéia de deleite dos sentidos, mas de algo vital para a perpetuação
da espécie.
São exemplos de danças de fecundidade, entre outras, as
danças de brincadeira, de beijos, matrimoniais, de nudez, de
iniciação, entre outras, com suas imitações
de trovões, raios e vento e os acessórios considerados
sexuais, como a flecha, a lança, etc.
- Danças de galanteio. São
encontradas no mundo todo, mas, pela sua criatividade se destacam as
formas húngaras, alpinas e espanholas.
A húngara deu origem à conhecida dança chamada
"czardas". Liberdade e poesia se refletem no rosto
do executante e quem a assiste sabe que jamais poderá ser reproduzida
mecanicamente por uma caixinha de música, como é possível,
por exemplo, com o minueto; a alpina, viva, livre e expandida, é
dançada, principalmente, por bávaros meridionais, tiroleses
e salzburgueses; as espanholas reproduzem o auge do galanteio. Dotadas
de uma perfeição que sempre encanta, preenche, como nenhuma
outra, talvez, a necessidade de emoção manifestada, tanto
por quem executa, como por quem assiste. Sua origem remonta aos fenícios,
em solo espanhol mesmo, provindo de uma herança de mais de 2000
anos. Fandango, jota, sevilhana, bolero, bulerias, alegrias,
entre muitas outras, a Espanha é um paraíso para os que
amam a dança.
- Danças fúnebres. Para
as culturas extrovertidas podiam significar uma trama da vida diante
do poder da morte. Usando a máscara como importante acessório,
essas danças imitavam os movimentos de um morto na tentativa
de se apossar do seu espírito. Curiosamente, a dança fúnebre
apresentava-se alegre quando, em rituais de casamento, era associada
à idéia de ressurreição. Em 1674 se teve
notícia dessa prática num rito religioso judeu realizado
em Clèves; passando à Alemanha e à Boêmia
deu origem ao motivo do conto infantil de "A Bela Adormecida"
que, ao receber um beijo, ressuscita para a vida transformando uma mórbida
cerimônia em animada celebração. O homem primitivo
sempre associou as diversas estações da natureza à
morte e à ressurreição e a arte sempre expressou
essa crença.
- Danças de armas miméticas.
Como diz o nome são executadas com armas. Ao representar a dança
em forma de luta vitoriosa onde se uniam a movimentação
dançada e a ação da batalha, imaginava-se garantir
o êxito da empreitada. As danças de habilidade podem ser
consideradas danças de armas pela necessidade que tem o executante
de possuir essa qualidade para evitar ferir ou ser ferido ao dançar.
Com freqüência, uma movimentação erótica
é associada à guerreira, assinalando a velha relação
entre a luta e a amor sensual e seu caráter defensivo. O poeta,
romancista, contista, ensaísta, crítico de arte, de literatura
e de música Mário de Andrade (1893-1945), no volume I
de suas "Danças Dramáticas do Brasil" menciona
a dança de armas como o motivo essencial das nossas "Cheganças",
tanto de marujos quanto de mouros, refletindo a herança luso-hispânica
que integra nossa colonização.
A dança de imagem também pode ser criação
do ser introvertido; esse dançarino pode sentir-se possuído
pelo ser que está representando, embora sua concepção
seja abstrata, ou seja, sem imagem. Essa dualidade introduz a forma intermediária
que tende a materializar a abstração e a idealizar a figura.
A dança sem imagem, abstrata, apresenta
formas ilimitadas. Buscando um êxtase que transcenda o estado físico
o dançarino acaba por conseguir sair "fora de si" para
participar do que acontece no seu próprio universo. Os temas, por
mais variados e fortes que sejam, são considerados enquanto idéia
pura, não intervindo, dessa maneira, na forma da dança.
As danças sem imagem podem ser:
- Danças medicinais. No centro
de um círculo, o dançarino-feiticeiro, em estado de êxtase
visionário, sugeria ver o passado e o futuro, aumentando, em
si mesmo, a sensação extática da comunidade e realizando
sua aspiração de se ver diante de um ato sobrenatural.
- Danças de fertilidade ou fecundidade.
Também xamânicas, eram executadas pelo feiticeiro que tentava
atrair forças da natureza imprescindíveis para o cultivo
da terra. Ainda podemos ver essas danças em cerimônias
de tribos indígenas ou de aborígenes. A célebre
dança popular Maypole (Dança do pau de fita) é
uma antiga dança de fertilidade dançada em maio. Na Europa
ela simboliza o fim do inverno e o início da primavera e o ingênuo
mastro era, originalmente, um símbolo fálico e pagão
desses ritos. Proibido pela igreja do período elisabetano, faz
parte da mais célebre criação de sir Frederick
Ashton [1],
"La fille mal gardée" [2],
inspirado no original de Jean Dauberval datado de 1789. Universais,
as danças de fertilidade ou fecundidade (o homem primitivo não
dissociava uma coisa da outra) não são dançadas
entre a semeadura e colheita, o que talvez explique sua proibição
nesse período entre muitos povos primitivos e justifique, igualmente,
a época em que tem lugar as temporadas de dança em grande
parte do mundo.
- Danças de iniciação.
Desempenham importante papel nos ritos de circuncisão, menstruação,
núpcias ou outros similares. São realizadas, em geral,
ao redor do fogo, com o rosto voltado para o Leste. Este detalhe ainda
é difundido por pensadores e filósofos espiritualistas,
já que a morte, o fim, assim como o ocaso estão a Oeste
(o passado) e o renascimento e a regeneração à
Leste (o amanhã). O ballet "La Bayadère"
mostra um típico exemplo de dança de iniciação
ao redor do fogo [3].
As danças de iniciação nupciais executadas em torno
de pedras "sagradas" recebem o nome de danças ígneas.
- Danças de tocha. Têm
o fogo como tema, o que significava e significa um sinal de distinção
para quem o carrega. A tocha olímpica é uma boa alegoria
da importância da luz, pelo que simboliza da luta do homem para
dominar o desconhecido e iluminar as trevas na permanente busca do amanhã
e da superação dos seus limites.
- Danças fúnebres. Em
geral executadas em círculo, têm ao centro figuras (xamã,
animal, mesa com alimentos, etc.) que só guardam com a festividade
uma relação muito distante. Com o sentido de proteger
os mortos ou os vivos contra espíritos hostis ou constituindo-se
numa dança que possibilite ao morto um encontro com os antepassados,
a dança funerária tem o propósito de criar um vínculo
entre os seres deste e os de outro mundo.
- Danças guerreiras. As danças
guerreiras sem imagem fazem parte do universo feminino. Sem participarem
dos combates, as mulheres acreditavam que dançando conseguiam
se transportar teluricamente para ajudar os homens na guerra. Pelas
danças guerreiras verifica-se que, como em todos os aspectos
das manifestações humanas, a dança pode se apresentar
através de culturas contrastantes. O extrovertido atinge o êxtase
imitando o que pode ver e o introvertido o faz sentindo-se possuído
pelo ser que está representando.
As danças mescladas se constituem da
mistura das duas formas já descritas e surgiram da mistura dos
povos e da difusão de suas diversas culturas. A dança por
sua própria natureza terminou por transportar o dançarino
extrovertido a um mundo no qual a mera imitação corporal
foi superada, afastando-o do sóbrio e da razão e levando-o
à abstração dos introvertidos.
Como danças mescladas classificam-se,
entre outras:
- Danças de fertilidade. Exemplificando:
uma vasilha com água colocada no centro de um círculo
cumpre o papel de ímã para atrair a chuva. Estilizando-se
a imagem chega-se à clássica figura de recolher com as
mãos uma água que já nem é mais colocada,
elevando-as em oferenda. Executado por uma virgem, esse gesto tem o
significado religioso da fecundidade; refinado pelo ballet ele
transformou-se no movimento conhecido como port-de-bras [4].
- Danças de iniciação.
São praticadas por ambos os sexos.
- Danças de armas. A alternância
entre imagem e abstração determinaram as formas das danças
européias recentes. Na forma clássica da dança
de espadas que floresceu entre os séculos XIV e XVIII a movimentação
acontecia ao ar livre. Contava com dois guias e um bufão e os
dançarinos, com o rosto pintado e guizos costurados aos trajes
brancos, portavam espadas e usavam pífanos e tambores. Os bailarinos
trançavam no solo suas armas realizando a coreografia ao redor
delas, terminando a cerimônia com exibições de esgrima,
uma dança de ronda e um cumprimento final. As danças de
paus, com seus golpes rítmicos provenientes da batida de um pau
contra o outro, também são consideradas danças
de armas. Os paus e as espadas são elementos usados à
vontade por diversos povos e pelos mais diferentes motivos. Vale lembrar
do nosso maculelê, por exemplo.
- Danças astrais. Podem ser solares
ou lunares. Subordinavam-se à idéia de assegurar a vida
e o crescimento através dos movimentos e das figuras formadas
pelos astros, movendo-se a favor ou contra os ponteiros do relógio.
As danças solares são menos criativas, já que o
percurso do sol é sempre uniforme e sua imagem sempre a mesma.
Como movimentação, o sol só induz à formação
de círculo, o que pode ser facilmente observável até
pelas letras das nossas músicas populares. "... Sol,
pelo amor de Deus não venha agora que a morena vai logo embora..."
Feitiço da Vila de Noel Rosa. A lua se apresenta aos nossos olhos
de diversas maneiras o que torna as danças lunares muito mais
interessantes e inspiradoras. As danças de coxear significando
seres ou forças da natureza também são consideradas
astrais. Interpretam o ciclo da existência: nascimento, vida,
morte e renascimento e a debilidade do recém-nascido que, na
sua fragilidade, não consegue caminhar sem coxear.
- Danças de máscara. A
máscara cumpria dois papéis: por um lado protegia quem
a usava e por outro permitia que ele assumisse um outro "eu".
Sem esse acessório a anulação da consciência
na dança dependia de uma transformação física
visível. A dualidade do significado da máscara se afirma
na medida em que, para os povos de caráter extrovertido, ela
incorporava os traços do animal que estava representando; para
os de cultura introvertida representava um espírito a quem o
xamã tivesse contemplado em sonhos.
No próximo capítulo ainda será possível encontrar
referências a máscara enquanto ornamento de inúmeras
danças.
Eliana Caminada
é Orientadora e consultora, escreveu
vários livros sobre dança, e responde pelas disciplinas
História da Dança e Técnica de Ballet Clássico
no Centro Universitário da Cidade. Professora convidada no projeto
"Sons Dançados do Brasil" do Centro de Artes Calouste
Gulbenkian, colabora com o jornal "Dança, Arte & Ação"
e participa, como palestrante, jurada ou pedagoga, de festivais e mostras
de dança por todo o Brasil. Foi bailarina do "Corpo de Baile
do Theatro Municipal do Rio de Janeiro", primeira-bailarina do "Balé
Guairá" e solista do "Ballet da Ópera Estatal
de Munique".
Ela também edita o site www.elianacaminada.net
e-mail: e.caminada@gmail.com
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Ver
outros artigos da coluna
[1]
Um dos mais importantes coreógrafos ingleses do século XX.
Nasceu no Equador e teve sua mais famosa obra montada para o Theatro Municipal
do Rio de Janeiro desde 1981.
[2]
Ver a história e análise da obra disponibilizada em artigo
separado.
[3]
Ver a história e análise da obra disponibilizada em artigo
separado.
[4] Transporte
de ininterrupto braços: um dos mais belo e complexos movimentos
do ballet clássico.
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