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Coluna "Por dentro da dança"
Entendendo a Dança 5
No antigo Egito o nascimento do drama

Eliana Caminada


"A arte não é uma imitação da natureza. Ela surge do colapso e da intensificação da essência religiosa, com a finalidade de, através de métodos mágicos, atingir os fins almejados, da mesma forma que um químico experimenta misturar certas substâncias tentando gerar um novo gás. A Arte envolve síntese, intensificação e repetição de observação. Um rito, como alguma coisa feita com um propósito, não tinha a intenção de imitar, competir com ou impor-se à natureza; antes, funcionava como ajuda para uma força derivada da natureza e, freqüentemente, a mímica era empregada. A Dança nos lembra constantemente da vida e da morte em seus vários aspectos, seja como rito, tragédia ou missa."
Lincoln Kirstein [1]
 
Do Oriente Próximo, somente o Egito deixou referências abundantes relacionadas à dança. Os hebreus mencionam algumas poucas danças bíblicas do Velho Testamento e o Novo Testamento se restringe à Dança dos Sete Véus de Salomé.

Mas, para os que amam a dança e a vêem como a arte mais reveladora da verdade interior, é o documento apócrifo que menciona Jesus como um choregos [2] , dançando, rodeado de discípulos, que fascina e faz refletir sobre a personalidade humana de Jesus. Que maravilha esse Jesus alegre, festeiro e... dançarino!!!

Toda a cultura do antigo Egito, cerca de 5000 a.C. a mais ou menos 1200 a.C., tem lugar num período que compreende parte do ciclo anterior à Idade do Bronze, inseridos aí a cultura cretense minóica [3], o começo e o fim da civilização de Tróia e as culturas micênicas [4]. Ao Médio e ao Novo Império corresponde a época bíblica dos patriarcas e dos juízes.

Os documentos deixados pelo povo egípcio revelam, não só a excelência de seus dançarinos e acrobatas, mas a importância da dança para aquele povo. Observando-os, consegue-se mensurar a perfeição técnica e o alto grau de civilização revelados em sua pintura, escultura e arquitetura. É mais do que natural que as imagens que retratam a dança mostrem-na como uma arte codificada e sistematizada.

As danças foram, inicialmente, confiadas a mulheres, mas, relevos posteriores mostram batedores de palmas marcando o ritmo para um grupo de dançarinos que avança em fila, com os braços para o alto, mãos unidas pelas pontas dos dedos, palmas voltadas para cima ou instrumentistas tocando harpa e uma espécie de flauta enquanto outros parecem estalar os dedos. O Egito e sua cultura são considerados o berço da dança histórica no Mediterrâneo.

A mescla das danças expandidas com as introvertidas deu origem a dança espetacular que, por sua vez, engendrou o drama mitológico. Os egípcios atribuíam a criação da dança a deuses associados a ritos de fertilidade. O deus anão Bes e a deusa Hathor são vistos associados à palavra "hbji", que significava, tal como aconteceria na Grécia com "Terpsícore" [5], estar alegre e dançar ao mesmo tempo. Osiris, filho bastardo de Geb (a terra) e de Nut (o céu) era a entidade mais reverenciada, juntamente com a irmã-esposa Ísis - a quem Platão atribuía a invenção do canto e da dança - e com Horus, por vezes apresentado como seu filho, outras como seu segundo irmão.

A decifração dos hieróglifos nos permitiu conhecer o ritual em honra de Osíris na cidade de Abydos. Os ritos duravam dezoito dias e até hoje sua representação é uma atração turística. A encenação constava de uma cerimônia de aradura e semeadura na qual, sacerdotes, músicos e bailarinos adentravam o templo em solene procissão executando, com danças pantomímicas mascaradas, a morte e a ressurreição da divindade. Enfeitados com fantásticos arranjos de cabeça, davam boas vindas com gritos de alegria à deidade ressuscitada e à semente do solo que brotava.

Plutarco e Lucius Apuleius foram os responsáveis pela divulgação da lenda de Osíris (O Muito-olhado), coletando-a de fontes ainda não desaparecidas em seus tempos. Amon Ra, o deus Sol, fora traído por Geb. Indignado, prometeu que não haveria mais dias ou anos. A solução teria sido encontrada em Thoth, outro amante da inconstante deusa Terra, que ganhara, numa aposta com a Lua, a septuagésima segunda parte de todos os dias; juntando essas partes Thoth as teria acrescentado aos trezentos e sessenta dias do ano egípcio. Estava formulada a origem mítica dos egípcios para explicar o tempo suplementar necessário para conciliar o calendário lunar com o solar. A esses personagens juntou-se Set, o irmão-inimigo, assassino responsável pela trama. Como afirmou o teatrólogo John Gassner, ao contar um enredo que remontava ao nascimento de um mito, revelava seu sofrimento e mostrava seu renascimento apontando um caminho para o amanhã o homem chegara ao drama.

Como não poderia ser diferente, a história de Osíris foi associada e tinha lugar no Rio Nilo, berço da civilização egípcia. No Nilo o deus era transportado para seu templo, onde era cultuado, transformando-se em senhor do tempo, juiz da morte, senhor da vida eterna e do infortúnio do inferno.

Como rei, Osíris redimiu os egípcios do barbarismo, deu-lhes Leis, introduziu o cultivo de cereais, trigo, cevada e milho, induzindo o povo a interromper o primitivo costume de comer seres humanos. Levando frutas, teria viajado pelo mundo a fim de desenvolver a agricultura e a civilização. Ao retornar passando a ser adorado como deus, colocara seu povo diante de uma promessa de eternidade que fora incorporada com total crença; para isso fazia-se necessário que os descendentes dos mortos procedessem como Isis, que juntara os pedaços do amado assassinado e os enterrara para que fosse pranteado em vários lugares ao mesmo tempo. Desde então, as cerimônias ritualísticas de morte sobrepuseram-se às regras da vida passando a ser observadas com absoluto rigor científico e até mesmo fanático.

Poeticamente, acreditava-se que eram as lágrimas de sofrimento de Ísis que enchiam rapidamente o rio, razão pela qual lhe dedicaram um festival que marcava a primeira tarefa de grande importância para aquele povo: abrir as represas que controlavam o rio prestes a renascer. Ciclicamente, em agosto as águas eram liberadas, em novembro havia a semeadura e em março e abril a colheita, após o que se realizava a outra grande tarefa: semear novamente o solo.

Osíris, enquanto símbolo de um deus que renasce, foi o herói de uma verdadeira peça-mistério ou tragédia, na qual já estão contidos os três elementos essenciais do drama que, suplementado pela Grécia, tornou-se a base do teatro como ainda assistimos hoje: o agon (conflito) com seu irmão-inimigo Set, seu pathos (sofrimento ou paixão) e o anagnoisis (renascimento, sinônimo de esperança de salvação).

Ritos semelhantes foram celebrados na Babilônia e na Síria, mas nenhum se transformou em manifestação artística como no Egito e na Grécia. A perenidade da divindade foi por muito tempo mais atraente para povos primitivos, do que o Deus dos cristãos que, uma vez ressuscitado, nunca mais morria novamente. Esses povos só entendiam a religião a partir da observação da natureza, com suas estações distintas e com características opostas.

Artistas profissionais que se apresentavam em jantares festivos eram conhecidos desde a mais remota Antigüidade. Ainda que nada tivessem com o que conhecemos como teatro, as cerimônias oficiais eram planejadas com grande teatralidade. As pessoas comuns procuravam imitar os nobres executando danças caricatas. Posteriormente, foram comuns as troupes (companhias) errantes de mimos e acrobatas em cidades próximas, oferecendo espetáculos improvisados em praças públicas em troca de oferendas.

A dança pura, sem enredo, teve, posteriormente, um sistema bem desenvolvido de passos e gestos que pressupõem treinamento, quanto mais não fosse, em função do aperfeiçoamento dos próprios cultos ritualísticos. Em pinturas e em baixos relevos encontram-se posições acrobáticas, tais como: trios em que dois homens arremessam uma mulher ao ar ou a sustentam em diferentes poses, algo que sugere uma à pirueta (um giro sobre um pé com o outro levantado), grand-écart (grande agachamento com as pernas estendidas, passo acrobático muito usado por ginastas e bailarinos) e "entrechats", passo de ballet no qual as coxas se cruzam e batem no ar. A posição que conhecemos como "ponte" era considerada com o símbolo do arco do céu sobre a noite, as mãos representando o leste e os pés o oeste.

Deve ter sido difícil diferenciar dançarinos profissionais de acrobatas. Mais tarde, mimos que parodiavam os maneirismos dos sacerdotes ou potentados foram permanentemente banidos.

Ao que tudo indica as danças femininas eram lentas, contavam com acompanhamento vocal ou instrumental e eram enfatizadas por trajes transparentes, apertados e pregueados. Os homens foram pintados de vermelho e as mulheres de branco ou amarelo pálido, o que pode ser facilmente explicado considerando que eles passavam o dia no campo, sob um sol abrasador, enquanto elas permaneciam na sombra, dentro das casas.

Os egípcios tinham danças de conjunto, de solistas, duos, trios, etc., mas, aparentemente, só os camponeses usaram, de fato, a dança coletiva, seja em ritos de fecundidade, seja em tramas pluviais. Evidenciando a distinção de classes sociais, os nobres só executaram, reservadamente, dança individuais e austeras. Os dançarinos dos templos constituíram-se em classe considerada especial.

Por volta de 1400 a.C., a dança ritualística transformou-se; apareceu o pandeiro e os tênues e sumários véus deram lugar a ricas indumentárias. Tais figuras, achadas em necrópoles, sugerem a execução de ritos fúnebres. Certas danças acabaram dominadas pela licenciosidade e os dançarinos passaram a ser mal vistos socialmente.

Os hieróglifos ainda deixaram a indicação de como se dava a movimentação ritualística. Por uma série de detalhes, quais sejam as máscaras usadas pelos personagens, o gestual estipulado e marcado pelo acompanhamento de cantos e danças, a ação dirigida no sentido da identificação dos deuses, considerou-se esse ritual o ancestral precursor do espetáculo.

 
Eliana Caminada (Maio de 2005)


[1] Lincoln Kirstein "DANCE - A SHORT HISTORY OF CLASSIC THEATRICAL DANCING"
[2] Choregos, palavra grega que corresponde, mais ou menos, a coreógrafo.
[3] Ver nota de rodapé número 9.
[4] Referente a cidade de Micenas.
[5] Musa grega da dança e do canto coral.

 

Eliana Caminada é Orientadora e consultora, escreveu vários livros sobre dança, e responde pelas disciplinas História da Dança e Técnica de Ballet Clássico no Centro Universitário da Cidade. Professora convidada no projeto "Sons Dançados do Brasil" do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, colabora com o jornal "Dança, Arte & Ação" e participa, como palestrante, jurada ou pedagoga, de festivais e mostras de dança por todo o Brasil. Foi bailarina do "Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro", primeira-bailarina do "Balé Guairá" e solista do "Ballet da Ópera Estatal de Munique".
Ela também edita o site www.elianacaminada.net

e-mail: e.caminada@gmail.com

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