- Tinha crescido cingindo-se ao seu tamanho, ciente das suas limitações, sabedor de que aos sonhos se chega por um esforço por vezes longo, por vezes pesado, por vezes demasiado grande em aparência.
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- Não lhe parecia mal ser um como todos os outros, e não se achava com direito a passar por cima das horas de trabalho, dos momentos duros, das verdades difíceis, dos fracassos, dos recomeços, da espera e da constância.
Quando era mais novo acreditava em fadas, e sabia muito bem que do céu desciam às vezes luzes maravilhosas, forças inesperadas e destinos magníficos. Mas achava que eram qualquer coisa que não podia encontrar em si mesmo: podia esperar por elas, mas devia esperá-las de fora de si.
Pensava - ainda que não pensasse nisso - que podia ter esperança em receber alguma dessas graças se aceitasse ser do seu tamanho de homem: o tamanho das pequenas coisas que diariamente podia fazer bem e o tamanho da força dos seus braços; e também o dos seus sonhos, desde que sujeitos ao tempo e ao suor.
Não era um herói. Não possuía superpoderes. Tinha apenas as suas mãos e a esperança.
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- Não sei bem qual foi o momento exato em que descobriu em si os poderes capazes de o fazerem passar por cima dos obstáculos, de lhe abrirem portas que pareciam impossíveis de ultrapassar, de lhe tornarem fácil aquilo que antes era difícil e duro e demorado.
O primeiro desses poderes chamava-se a mentira. Foi um deslumbramento. Descobriu que com ela alcançava facilmente outra dimensão, que tudo se simplificava, que nenhum sonho era então demasiado grande. Eram palavras mágicas, as que usava para mentir: utilizava-as e era como se os obstáculos se dissolvessem. As montanhas tornavam-se planas, os caminhos suaves. Com ela ganhava asas: era capaz de voar por cima daquilo que os outros tinham de atravessar lentamente, subindo, sofrendo, ferindo-se em silvas, gastando as mãos, o tempo e a vida.
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- Sentia-se forte, poderoso, invencível. Nunca mais pensou em fadas, nem em anjos, nem no Deus de quando era criança. Já não precisava da esperança: bastava-se a si próprio. Os seus poderes tinham feito dele senhor do seu destino.
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- Chegou longe. Enriqueceu. Teve o seu nome nos jornais. Obteve lugares importantes. Foi nomeado. Admirado. Eleito. Tornou-se uma pessoa importante.
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- E a mentira alastrou na sua vida, passando das palavras a todos os recantos. O seu prestígio era uma mentira, o seu casamento era uma mentira, as suas amizades eram mentira. Parecia ter as mãos limpas, e isso não era verdade. O seu sorriso era artificial, e até a sua gravata dizia para fora aquilo que ele não era por dentro.
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- Alcançou todos os seus sonhos. Mas aquilo com que sonhava era já bem diferente dos seus sonhos antigos - lembrava-se de ter desejado tantas vezes coisas como a paz no mundo, a cura de um doente, pão para aquelas crianças esqueléticas de África que via na televisão... Agora eram desejos de ter poder e influência, de ter fama, de ter prazeres, de ter coisas. Ele próprio era o centro dos seus sonhos.
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- Com a mentira, pouco a pouco, descobriu outros poderes que lhe davam grandes vantagens. O maior deles foi o de se tornar capaz de silenciar a consciência: aquela vozita incómoda que muitas vezes o censurava. Tornou-se capaz de avançar pisando os outros, sem que isso o preocupasse; de roubar chamando ao roubo outro nome. E isso permitia-lhe avançar ainda mais depressa.
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- Avançar... Ultimamente, apetecia-lhe muitas vezes fugir disso que tinha construído. Deitar tudo fora. Deixar que o guiassem. Aceitar o que viesse, fosse o que fosse. Descer todos os degraus até chegar a esse estado em que só se tem a esperança e todos são irmãos e se pode ser feliz. Como as crianças. Como os pobres mais pobres.
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- Sabia que não prestava, que nada do que tinha alcançado prestava. Em certas noites de nojo e solidão, compreendia que a única forma que tinha de avançar era semelhante a um regresso. Seria capaz?
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- Não sei que fim teve; nem mesmo se teve um fim. Se calhar existirá enquanto houver homens. Se calhar ele é muitos e anda por aí: talvez também, de algum modo, em ti e em mim.
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Paulo Geraldo
Paulo Geraldo atuou como professor do Ensino Básico e Secundário em diversas escolas em Portugal. É poeta e escritor.
Mantém o site CIDADELA de estudos da Língua Porguesa, e o site Educar Bem , que trata dos temas como Educação, Família,
Adolescência, Caráter e Virtudes, Namoro, Sexualidade e Casamento. Atualmente mora em Coimbra, Portugal.
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