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Ajudar e ser ajudados em qualquer idade
Antonio Millán-Puelles


O filósofo Antonio Millán-Puelles expõe neste marco intergeracional as suas reflexões sobre a velhice e o que os idosos devem dar e receber da sociedade. As páginas aqui resumidas são parte de uma palestra sobre o problema do envelhecimento demográfico, apresentada na Academia de Ciências Morais e Políticas.

Por que o envelhecimento demográfico é realmente um problema? Por que é sempre considerado algo negativo?

 

Em si, o aumento da expectativa de vida, e também o da quantidade de idosos, não constitui um problema. Pelo contrário, o sinal que podemos atribuir-lhe é sem dúvida positivo. Mas não é verdade que se atribui à velhice um indelével caráter negativo?

 

Os argumentos que alguns psicólogos contemporâneos utilizam para conferir uma feição negativa à velhice referem-se à velhice em geral, e não a uma certa maneira de vivê-la por parte de alguns idosos, e da qual outros estão livres. Tais psicólogos atribuem a todos os anciãos, pelo puro e simples fato de o serem, uma situação psíquica fundamentalmente dominada pelo egoísmo e pelo sentimento irreprimível de solidão. A arbitrariedade desse modo de imaginar o caráter geral dos idosos é totalmente comparável ao abuso em que incorrem os que pensam que o egoísmo e a irreprimível solidão constituem os traços fundamentais da psicologia juvenil.

 

Lembro-me do título de um dos romances mais conhecidos de Ernest Hemingway, O velho e o mar. Dificilmente esquecerei o calafrio que tive ao ler a primeira frase do livro: “Era uma vez um velho sozinho em seu barco”. Mas o relato que começa desse jeito, longe de ser uma crônica dos pesares e dissabores de um velho e solitário pescador, é a história da lealdade e da amistosa ajuda que o ancião recebe de um generoso rapaz, correspondidas na mesma nobre medida pelo pescador.

 

 

ELES DÃO OU APENAS RECEBEM?

 

Vejamos: se o motivo do caráter negativo do envelhecimento demográfico não é a velhice em si mesma nem o aumento do número de idosos, é preciso perguntar se o motivo não estaria no fato de os idosos serem vistos apenas como beneficiários daquilo que os outros membros da sociedade fazem por eles.

 

Estamos diante de um debate entre gerações. Serve aqui a fórmula de S. Wisensale, da Universidade de Connecticut: “Os idosos contribuem para a melhoria do bem-estar social ou apenas se beneficiam dele?”

 

Examinemos quatro das respostas  mais sérias a essa pergunta. Não são dirigidas ao professor Wisensale, mas estão postas no marco intergeracional em que se insere o tema. As três primeiras respostas são parábolas, mas a sua interpretação é bem simples.

 

1. No seu romance O prazo fixo (The Fixed Period, 1882), Anthony Throlopp conta que em uma ilha imaginária os habitantes que alcançam os 67 anos de idade são obrigatoriamente internados em um asilo chamado Necrópolis. Lá, dedicam-se a meditações pré-eutanásia com o objetivo de se convencerem de que a sua morte é justificada e exigida pela sua própria dignidade e pelo fato de se terem tornado um fardo para os outros habitantes da ilha. Quando o prazo termina, os idosos são anestesiados com clorofórmio e incinerados.

 

Throlopp quer provar, sem qualquer tipo de evidência, que os idosos representam um alto custo para o resto da sociedade e que são incapazes de prestar serviço aos outros. À gratuidade de ambas as suposições, deve somar-se o erro de considerar indigna a situação de quem não está em condições de ser útil aos outros. Certamente, nem todos os homens que alcançaram os 67 anos estão nessa situação; mas todos os que têm essa idade não perdem a dignidade específica da pessoa humana, um valor essencialmente intrínseco a todos os homens e que, como tal, deve ser respeitado em qualquer circunstância (São Tomás de Aquino e Kant, tão divergentes em muitos assuntos, concordam por inteiro neste ponto).

 

 

REGRA DE OURO

 

2. Simone de Beauvoir narra-nos em Velhice (Vieillesse, 1974) uma eloqüente parábola sobre uma família de camponeses em que o avô foi obrigado a comer todos os dias, isolado dos seus, numa cocheira. Um belo dia, o neto está juntando uns pedaços de madeira e, ao vê-lo nesse trabalho, seu pai pergunta-lhe: “O que você está fazendo?”. E o menino responde: “Estou fazendo uma cocheira para o senhor, para que coma nela quando for tão velho como o vovô”.

 

Faríamos uma violência à parábola se pensássemos que o garoto quis dar uma lição no seu pai. Aliás, o relato torna-se ainda mais instrutivo quanto menos intencional – mais simplesmente espontânea – é a resposta do neto em um claro paralelismo com o comportamento do seu pai. A fábula termina com o retorno do avô à mesa da família. A “lição”, mesmo que não intencional, foi realmente aproveitada.

 

Eu a interpreto no seguinte sentido: embora o avô chegue de fato a ser uma autêntica carga, a família deve manter-se unida a ele, pois ele em si mesmo não consiste numa carga. E quem o abandona merece ser abandonado “quando for tão velho como o vovô”.

 

Vingança ou simples justiça? Simone de Beauvoir não decide: e, não obstante o ateísmo pessoal da autora de Vieillesse, a moral da história é uma boa aplicação da “regra de ouro” estabelecida por Jesus Cristo: “Tudo que queirais que os homens vos façam, fazei-o também vós a eles”.

 

 

AJUDAR E SER AJUDADOS

 

3. Harry Moody, no livro Ethics in an Ageing Society (“Ética numa sociedade que envelhece”, 1992), narra uma fábula à qual depois contrapõe a de Simone de Beauvoir.

 

A fábula de Moody fala de um pássaro fêmea que voa em busca de comida, levando nas costas uma cria, à qual pergunta: “Quando eu for velha e débil, vais tu levar-me sobre a tuas costas, como te levo agora?” A cria responde: “Oh, não, mãe! Levarei minha própria cria, assim como fazes agora”.

 

O ensinamento do conto de Moody, como ele próprio explica, é que correspondemos à generosidade dos nossos predecessores sendo generosos com os nossos sucessores. Certo, e por acaso é verdade que se corresponde assim ao que os nossos predecessores fizeram por nós? Moody deixa a questão em aberto. Mas está bem claro que a resposta do filhote é injusta, porque não é justo que, havendo os recursos necessários, A não ajude B que precisa e que ajudou A quando este esteve precisado anteriormente. A carga pode ser dupla: por um lado, para com os predecessores, e por outro lado, para com os sucessores. Mas mesmo assim é certo que responde objetivamente a uma dupla exigência de justiça.

 

4. Norman Daniels, pertencente ao círculo de J. Rawls, defende em vários textos que a justiça na distribuição dos recursos sociais exige um tratamento desigual nas diversas idades do homem. “Dado as que nossas necessidades mudam nas diferentes etapas da vida, queremos instituições que respondam a essas mudanças”. Este princípio deve ser respeitado dentro de um ideal de sociedade em que todos ajudem e sejam ajudados, segundo as possibilidades respectivas em cada situação.

 

Daniels procura manter um equilíbrio justo entre as cargas, partindo da idéia de que a mesma pessoa pode ter acesso diferente a diferentes recursos nas distintas fases de sua vida.

 

 

O QUE OS IDOSOS PODEM DAR

 

Posso esquematizar a minha própria posição em três pontos diferentes:

 

a) Só há uma classe de pessoas que não tem deveres, mas apenas direitos. Pertencem a essa classe todo o nascituro e toda a criança de muito pouca idade e, apenas no que diz respeito aos deveres em matéria econômica, bem como todo o homem que não tenha capacidade de cumpri-los (por carecer dos meios materiais necessários ou por alguma perturbação de índole psíquica).

 

b) Os membros dos demais setores sociais têm muitos direitos e deveres, além das suas obrigações morais para com os que pertencem ao grupo acima.

 

c) Quanto aos idosos, é preciso reconhecer-lhes direitos e deveres. Em primeiro lugar, o direito a um digno nível de vida material e espiritual. Logicamente, isso levanta questões econômicas cuja solução, tendo em conta circunstâncias concretas, é da competência dos economistas e dos governantes. Este direito tem a sua razão de ser mais profunda na dignidade da pessoa humana, e não naquilo que os idosos, quando ainda não o eram, fizeram em benefício de sua prole, o que lhes confere, claro, um direito acrescentado àquele baseado na dignidade pessoal de todo homem.

 

Antonio Millán-Puelles, Filósofo



 


Fonte: Artigo publicado no site da Editora Quadrante - www.quadrante.com.br

Publicado no Portal da Família em 04/11/2006

 

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