Portal da Família
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NEUTRALIDADE TENDENCIOSA |
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André Gonçalves Fernandes |
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Toda sociedade necessita estabelecer um rol de direitos e deveres que possibilitem o convívio social, o que já foi batizado por alguns juristas e filósofos de “mínimo ético”, demarcando a fronteira entre moral e direito. O problema surge no momento de se obter os critérios para resolver se um determinado problema, por sua relevância pública, deve ser regulado pelo direito. Hoje em dia, busca-se imputar, sem qualquer debate, soluções ideológicas que se apresentam como neutras. Se, por um lado não cabe impor as próprias convicções aos demais, de outro, que pretensão é essa de almejar que os outros pensem exatamente como nós? Visto sob outro ângulo, o jurídico, talvez o panorama fique menos embaçado. Se fosse imaginável uma sociedade em que cada qual pudesse comportar-se segundo um entendimento comum, seria necessário o direito? O direito existe precisamente para que alguns cidadãos comportem-se de determinado modo, em que pese seu escasso convencimento a respeito. Quem está convencido de que a defesa de seus heróicos ideais políticos justifica valas de cadáveres, de modo indiscriminado ou seletivo, procurar-se-á convencê-lo do contrário com as sanções oportunas. A democracia não é relativista e isto é perfeitamente compatível com o reconhecimento do pluralismo como “valor supremo de uma sociedade fraterna e sem preconceitos”, segundo dispõe o preâmbulo da Constituição Federal de 1988. O direito apresenta-se sempre como um mínimo ético, o que exclui, de início, que os demais devam compartilhar de nossas mais apreciadas máximas. Contudo, mesmo este mínimo ético deverá balizar-se por meio de procedimentos que não convertam o cidadão em um mero destinatário passivo de mandatos heterônomos. A criação do direito deverá estar sempre alimentada pela existência de uma opinião pública livre, o que converte determinadas liberdades públicas, sobretudo as de informação e expressão, em algo mais que simples direitos fundamentais: serão também garantias institucionais do próprio sistema político. E isto não implica em relativismo algum. A democracia não deriva do convencimento de que nada é verdade nem mentira; o que, para alguns, deveria impor-se aos demais. A democracia apresenta-se como a fórmula de governo mais verdadeiramente adequada à dignidade humana e, em conseqüência, recorrerá, se necessário for, ao direito para manter na linha os comportamentos daqueles que não se mostrem demasiado convencidos disto. A democracia não deriva sequer da constatação de que o acesso à verdade resulta, principalmente em questões históricas e contingentes, em labor notavelmente problemático. Assim, apóia-se, uma vez mais, em uma insofismável verdade: a dignidade humana exclui que se possa prescindir-se da livre participação do cidadão em tão relevante jornada. Quando se identifica democracia com relativismo, qualquer um que insinue, ainda que remotamente, que algo possa ser mais verdadeiro que o do outro, logo será visto como um inimigo. O mais curioso da questão reside no fato de que, ao arrepio do princípio da não contradição, o relativismo converter-se-á em um valor absoluto subtraído de toda espécie de crítica. Para aqueles que apresentam dificuldade em fazer compatível democracia e verdade, o problema ganha contornos mais delicados quando as verdades propostas deixam entrever algum grau de ligação com as confissões religiosas socialmente majoritárias. Ao debate sobre o relativismo une-se agora o laicismo, o qual refuta a presença do religioso na vida social, não o acolhendo com a mesma naturalidade do elemento ideológico, cultural ou social. Evidente que, quem se fecha a uma visão transcendente da existência, tende a reduzir tudo ao argumento político e a avaliar, sob a ótica estrita do poder, todo o dinamismo social. A lógica autoridade moral que os cidadãos tendem a reconhecer nas religiões é substituída pelo argumento de usurpação do poder político pelas confissões, as quais teriam a pretensão de exercer uma potestade intrusa e não lastreada por votos. O único modo de extirpar tal pretensão seria uma forçada privatização de toda vivência religiosa, que careceria de legitimidade de presença pública e ostensiva. Quando algo tão elementar fica relegado a um plano periférico, a liberdade religiosa desaparece na prática como direito fundamental, relegada à mera atividade privadamente tolerada. Superada a velha idéia marxista de que a religião seria o ópio do povo, o que obrigava sua perseguição, passou-se, num heróico e surpreendente progresso, a tolerá-la como tabaco do povo: pode-se fumar um pouco, sem incomodar os outros, e desde que seja fora dos locais de trabalho. Só falta o Ministério da Saúde advertir o cidadão que tal espécie de tabaco faz mal à saúde... |
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ANDRE GONÇALVES FERNANDES, Post-Ph.D. Juiz de Direito e Professor-Pesquisador. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre, Doutor e Pós-Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito, titular de entrância final em matéria cível e familiar, com ingresso na carreira aos 23 anos de idade. Pesquisador do grupo PAIDEIA-UNICAMP (linha: ética, política e educação). Professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU Escola de Direito. Coordenador Acadêmico do Instituto de Formação e Educação (IFE). Juiz instrutor/formador da Escola Paulista da Magistratura (EPM). Colunista do Correio Popular de Campinas. Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB. Coordenador Estadual (São Paulo - Interior) da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Membro do Comitê Científico do CCFT Working Group, da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas e da Academia Iberoamericana de Derecho de la Familia y de las Personas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Conferencista e autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Membro Honorário da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Titular da cadeira nº30 da Academia Campinense de Letras. E-mail: agfernandes@tjsp.jus.br Publicado no Portal da Família em 15/03/2008 |
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