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André Gonçalves Fernandes
Coluna "Lanterna na Proa"

LAICISMO E RELATIVISMO

André Gonçalves Fernandes

Laicismo e relativismo compõem uma estranha união, porquanto as rígidas proposições do primeiro demandam um caráter absoluto dificilmente vencível pelo segundo. Contudo, o inimigo comum une-os, conseguindo uma mistura incrivelmente miscível, já que um poderia ser considerado azeite e, o outro, água.

O relativismo rechaça toda justiça objetiva e o laicismo quem pretenda pregá-la. Hoje, quem tenha em mente soluções objetivamente mais verdadeiras que outras, será rotulado de autoritário, por mais aberta que seja sua atitude subjetiva na busca e na realização prática desta verdade.

Tal conclusão confunde o plano da realidade (existir ou não elementos objetivos) com o de seu conhecimento (pode-se conhecê-los racionalmente com maior ou menor dificuldade). O relativismo cria uma natural dificuldade de acesso à verdade e, em conseqüência, decreta que há caminhos diversos para acercar-se desta e tende a considerar o êxito alcançado como provisório.

Esta postura acaba por salientar que existe uma realidade objetiva que tem sentido buscar; do contrário, sobrariam todos os caminhos imagináveis e sempre nos posicionaríamos com um juízo relativista ao problema posto.

A propositada vinculação do moral com o religioso incrementa ainda mais a dificuldade do deslinde entre o jurídico e o moral. A tendência será de confinar o elemento religioso, incluídas suas propostas morais, no âmbito privado e preservar o jurídico em um âmbito público isento de qualquer possível influência daquele elemento.

Esta correlação, um tanto simplista, da perspectiva moral ao âmbito do privado e a jurídica ao do público deixa sem resolução o problema decisivo: como podemos demarcar a fronteira entre um e outro? Quais os critérios para decidir se determinado problema, por sua relevância pública, deva ser regulado pelo direito ou se convém “privatizá-lo”, deixando-o ao alvedrio dos critérios morais de cada qual?

O problema surge porque, somente partindo de um determinado conceito de pessoa humana (e da inevitável tradução deste nas diretrizes de um código moral), caberá desenredar o rol de exortações morais merecedoras de lastro jurídico e outras que competiria confiar ao critério pessoal. Assim como apartar os problemas que se revestem de relevância pública, os quais o direito não poderá ignorá-los, privatizando-os imprudentemente.

No momento de abordar esta questão crucial, não há saída que não a determinação do âmbito juridicamente relevante e tomar, como paradigma, de modo mais ou menos consciente, os princípios gerais do direito. Como as premissas antropológicas e morais não serão unânimes, sempre haverá quem não veja inserido no ordenamento jurídico sua proposta de solução. Considerando as convicções de todos, ao final haverá que se impor, a mais de um, aspectos que pessoalmente não são seus.

Ter em conta as convicções pessoais de todos equivale, de outra parte, a reconhecer que todos têm convicções. O laicismo tende a estigmatizar, como tais, apenas aquelas proferidas pelos crentes, como se os demais tivessem o cérebro oco. A partir de tal perspectiva, consolida-se uma concepção discriminatória da expressão “convicção”, vinculando-a de modo exclusivo aos juízos morais que guardem verossimilhança com posturas defendidas por determinadas confissões religiosas.

Situados ante a necessidade ineludível de traçar a linha entre o juridicamente exigível e o moralmente admissível, o laicismo opta por tomar partido disfarçado de árbitro. Atribuirá a patente de neutralidade a suas parciais propostas de não contaminação. Conseguirá assim, com rara eficácia, impor suas convicções pelo simpático procedimento de não confessá-las, apenas por havê-las formulado a partir de pressupostos filosóficos ou morais não claramente similares aos de uma confissão religiosa.

Característica desta escamoteada discriminação, atentatória à liberdade religiosa, é a proposta de que o direito assuma uma postura inibida, envergonhada, optando por mostrar-se neutro diante de problemas particularmente polêmicos.

Atalhar a controvérsia, apresentando com ar neutral condutas que antes eram rechaçadas por um juízo de valor mínimo, seria o modo mais eficaz, na ótica do laicismo, de contribuir para o progresso e de vencer o obscurantismo. Na realidade, apenas se substitui um anterior juízo de valor, submetido ao debate, por outro que, disfarçado de neutralidade, passa pela tangente de toda argumentação.

A causa última do problema acaba por surgir, como que por trás de um manto diáfano: as ideologias de matiz totalitário mostram-se incapazes de suportar uma convivência entre a autoridade moral e a potestade política. Reduzem tudo ao viés político, acompanhado – como mais uma expressão da soberania – do direito de infligir a todos os cidadãos um código moral que, não sendo neutro, neutraliza aquele vigente e inverte, assim, o jogo democrático.

 



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ANDRE GONÇALVES FERNANDES, Post-Ph.D. Juiz de Direito e Professor-Pesquisador. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre, Doutor e Pós-Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito, titular de entrância final em matéria cível e familiar, com ingresso na carreira aos 23 anos de idade. Pesquisador do grupo PAIDEIA-UNICAMP (linha: ética, política e educação). Professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU Escola de Direito. Coordenador Acadêmico do Instituto de Formação e Educação (IFE). Juiz instrutor/formador da Escola Paulista da Magistratura (EPM). Colunista do Correio Popular de Campinas. Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB. Coordenador Estadual (São Paulo - Interior) da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Membro do Comitê Científico do CCFT Working Group, da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas e da Academia Iberoamericana de Derecho de la Familia y de las Personas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Conferencista e autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Membro Honorário da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Titular da cadeira nº30 da Academia Campinense de Letras.

E-mail: agfernandes@tjsp.jus.br

Publicado no Portal da Família em 01/09/2008

 

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