Portal da Família
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Em bom Português |
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Sueli Caramello Uliano |
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Em face do projeto, já em execução, financiado em parte pelo Ministério da Cultura, que prevê a edição de versões simplificadas de grandes obras de autores clássicos brasileiros, a começar por Machado de Assis, lembrei-me desta crônica que publiquei na Revista Ser Família em 2011, quando houve polêmica a respeito do conteúdo de uma coleção de livros didáticos de Língua Portuguesa. Acredito que a reflexão, tratada literariamente, aplica-se aos dois casos. Isso me motivou a publicar aqui estas reminiscências do convívio com a minha menina. Não era a primeira vez que a minha menina se animava a ajudar-me na cozinha. Com dois anos, subia numa cadeirinha para alcançar na pedra da pia e passava os bifes à milanesa. Eu os passava no ovo e punha no prato sobre a farinha de rosca. Era muito engraçado ver aqueles dedinhos curtos e gordos apertando os bifes, virando-os. No final, a pequena tinha farinha até no rosto e nos cotovelos. Naquele dia, um pouco mais crescida, mas ainda sem dispensar a cadeirinha – teria em torno de quatro anos –, apresentou-se solícita: – Mamãe! Posso fazer a salada e temperá-la? Que “fizesse” a salada não era novidade. Consistia em arrumar as folhas de alface, as rodelas de tomate já picadas, as rodelas de ovo cozido, cebola, os bouquets de couve-flor, e o que mais houvesse, numa travessa oval. A novidade estava na linguagem. – Temperá-la? – Isso! Temperá-la! – repetiu saboreando as sílabas. – Com sal, azeite, vinagre, maionese na couve-flor... No dia seguinte, passou a manhã recortando, colando, colorindo. Apresentou-me, por fim, o presente: um anel muito bonitinho, com uma margaridinha no lugar da pedra, todo feito em papel. Coloquei-o no dedo, junto com a aliança, encantada com a habilidade dela, mas retruquei: – Ah! Filhinha, se a mamãe usar esse anel fazendo o almoço, ele não vai durar... – Então, guarde-o! Disse-o marcando bem as palavras com um sorriso maroto e correu para a sala, rindo alto. E eu fiquei encafifada. Mesmo sendo professora de português, nunca tive uma preocupação especial com o uso da linguagem no dia-a-dia. Diria até que sou um tanto relaxada nesse particular e, com certeza, nunca havia corrigido a fala da minha filha em detalhes como o uso dos pronomes pessoais oblíquos. Minutos depois ela voltou: – Vossa Majestade já vai arrumar a mesa para o almoço? – disse e fez uma leve reverência com o corpo, como se erguesse com as pontas dos dedos uma saia rodada. – Sim, Alteza! – entrei na brincadeira e as duas caímos na gargalhada. Alguns dias depois, o mistério esclareceu-se. A professora do Jardim da Infância comentou comigo que, na Semana da Criança, havia proposto aos alunos que levassem seus vídeos preferidos para ver com os coleguinhas. A minha filha levara “Alice no País das Maravilhas” e tinha sido divertido perceber que ela repetia, de cor, todos os diálogos. Acredito que mais do que uma questão de assimilar a linguagem, minha filha identificou-se com a personagem Alice, e, além de decorar as suas falas, assimilou estruturas e as reproduziu em situações semelhantes. Sabia, no entanto, que era uma linguagem diferenciada, tanto como se nota na animação da Disney, já citada, de 1951 e, inclusive, na outra clássica produção, “Branca de Neve e os Sete Anões”, de 1937, que as fitas de vídeo puseram ao alcance da minha filha por quantas vezes quisesse apreciá-las. Entendo que ela percebia – como, aliás, qualquer criança pode percebê-lo – que no seu dia-a-dia não falava como Alice e Branca de Neve e seus personagens, mas que era possível falar como eles e que havia uma certa beleza naquelas expressões. Destaco, por exemplo, em Alice: “Poderão ajudar-me?”, “Prazer em conhecê-los”. A centopéia (por incrível que pareça fumando narguille adoiadada) a intima: “Quem és tu? Explica-te!” Referindo-se à Rainha de Copas, pergunta Alice: “Mas como vou encontrá-la?”. Quando Alice é perseguida, as cartas de baralho gritam: “Cortem-lhe a cabeça!”. E, à parte essa questão dos pronomes, há inúmeras frases de beleza poética como esta: “porque busco um coelho branco!”. Em Branca de Neve, o carrasco refere-se à Rainha dizendo: “Ela é má, invejosa, ninguém pode detê-la.” Há muitos anos venho reparando na perda de qualidade, enquanto instrumento de ensino da língua, da dublagem dos desenhos animados e dos filmes. Na mesma linha de “demolição” encontram-se as legendas. Novelas, então, sem comentários, excetuando-se alguma novela de época, cada vez mais rara. Há alguns poucos exemplos que fogem a essa regra, como o desenho “Hey, Arnold!” e, certamente deve haver outros, mas minha filha cresceu, entendem? E eu já não garimpo desenhos na televisão. No último mês, no entanto, o problema da adequação da linguagem foi tema de debate nacional, visto que um livro didático apresentou como tolerável que a concordância nominal e verbal varie conforme a classe social ou nível cultural do falante. Isso de o livro trazer frases do tipo “nós pega o peixe” ou “os menino pega o peixe”, as vinhetas com o personagem Chico Bento, da Turma da Mônica, presentes em boa parte dos livros didáticos, já o fizeram à farta. Copio, no entanto, do livro em questão, o trecho que achei mais curioso:
Considero que há um equívoco nessa análise. Ela estabelece um preconceito contra aqueles que, cumprindo a sua função de professores, ensinam justamente a norma culta, até porque a outra “variante” ninguém precisa ensinar, já que está presente no dia-a dia do aluno e, como vimos acima, também predomina nos filmes e animações. Ora, se o falante tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião, a escola, com o auxílio dos livros didáticos de todas as disciplinas, tem obrigação de lhe proporcionar esse acesso. E muita gente tem de dizer como se deve falar e escrever para ter um ótimo cartão de visitas que lhe abrirá portas. É pena que se promova uma verdadeira demolição da linguagem nas dublagens e legendas dos filmes e animações. Reparei, inclusive, que vai escasseando a forma “nós” e a devida conjugação verbal dessa pessoa. Tudo é “a gente”. Se em “Alice no País das Maravilhas” o gato, referindo-se à rainha sugere: “Nós poderíamos irritá-la.” Já em “Procurando Nemo” a peixinha Dory dialoga com o cardume, referindo-se a Marlim: “Cês irritaram ele direitinho!” Tudo bem, é linguagem coloquial, mas não poderia ser também um recurso de ensino-aprendizagem? Em alguns momentos ou cenas não poderia predominar a norma culta? Até que ponto, ao empobrecer a linguagem, se promove uma restrição ao pensamento, a certas sutilezas de raciocínio? O grande e malévolo pré-conceito que se estabeleceu é que o povo, a começar pelas crianças, não tem condições de entender uma linguagem bem cuidada. Ignora-se o alerta de Goethe, citado por Viktor Frankl* : Se tomamos os homens como eles são, fazemo-los piores; se os tratamos como se eles fossem o que deveriam ser, conduzimo-los aonde cumpre conduzi-los.** No mais, minha filha, aos oito anos, conheceu as músicas de Adoniram Barbosa, interpretadas pelos “Demônios da Garoa”. Cantava-as e gostava muito. Penso que as crianças têm um recado para os que julgam que elas não conseguem entender e muito menos assimilar a norma culta. Vamos lá, crianças, digam juntas: “Nós podemos fazer a salada e temperá-la porque nóis num semo tatu!” * trecho de Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, adotado pelo Ministério da Educação (MEC) para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) ** Viktor Frankl – Psicoterapia e Sentido da Vida. Edições Quadrante. |
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Sueli Caramello Uliano , mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela Universidade de São Paulo, Presidente do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para assuntos de adolescência e educação. É autora do livro Por um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais. e-mail: scaramellu@terra.com.br Publicado no Portal da Família em 03/06/2014 |
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