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Vulgarização do crime bem-nascido

Carlos Alberto Di Franco

Sete estudantes de Brasília foram presos em Porto Seguro, na Bahia, por linchar o garçom Nelson Simões dos Santos. O crime ocorreu em uma das ruas mais movimentadas de Porto Seguro. Os rapazes, todos de classe média, reagiram ao pedido do garçom para que desocupassem a mesa de uma churrascaria espancando-o até a morte.

O crime, não obstante sua covarde crueldade, não produziu o mesmo impacto que causaria no passado. Basta lembrar a forte reação da sociedade aos dois crimes que chocaram o País, ambos cometidos por jovens brasilienses de classe média: o espancamento e morte do estudante Marco Antônio Velasco e o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos. O crime de Porto Seguro está sendo tratado como mais um. Um registro excessivamente rotineiro na crônica policial da sociedade sem alma. Ele ocupou, talvez, o tempo de uma conversa de bar. E nada mais. É duro, sobretudo para os familiares da vítima, mas é assim. Estamos, todos, perigosamente anestesiados pelo câncer da violência que vai minando o organismo social. Assistimos a uma surpreendente vulgarização da delinqüência bem-nascida.

“Como é que chegamos a isto?” A pergunta de um leitor, carregada de angustiada perplexidade, está subjacente em inúmeras cartas que, diariamente, chegam às redações dos jornais. É difícil acreditar que apenas diferenças sociais, níveis de pobreza ou quaisquer explicações exclusivamente socioeconômicas sejam suficientes para explicar a escalada de maldade que invadiu o cotidiano.

Francis Fukuyama atribui o aumento da violência à “cultura do individualismo”. Segundo ele, a mesma sociedade que não admite limites em sua inovação tecnológica (basta pensar nas conseqüências anti-humanas que se vislumbram na clonagem sem balizas éticas) também “não percebe os limites em muitas formas de comportamento pessoal, e a conseqüência é o aumento do crime, famílias desfeitas, o malogro dos pais em exigir obrigações dos filhos, a recusa do vizinho de ter responsabilidade pelo outro e a retirada dos cidadãos da vida pública”.

Há, de fato, no cerne da patologia, uma profunda raiz cultural. Na verdade, as bases racionais da modernidade foram minadas pelo pensamento de Nietszche. O pai do relativismo moderno sempre argumentou que o homem era um animal criador de valores e que a complexa “linguagem do bem e do mal” manifestada pelas diferentes culturas era puro produto da razão. Rompeu-se, assim, o nexo de união entre vontade e razão. Dessa forma, as pessoas passaram, no seu comportamento prático, a confundir gosto com vontade, sem conseguir captar as profundas diferenças existentes entre ambos. Por isso, cada vez mais o gosto, o capricho, o prazer (incluindo as suas manifestações mórbidas e doentias) passaram a impor a sua força cega.

Um dos traços comportamentais que marcam a crescente decomposição ética da sociedade é, de fato, o desaparecimento da noção da existência de relação entre causa e efeito. A responsabilidade, conseqüência direta e lógica dos atos humanos, simplesmente desapareceu. Além disso, quando toda uma geração é educada nas telas dos computadores, onde tudo, rigorosamente tudo, está ao alcance da mão (ou da fantasia); quando não existem distâncias nem intermediários entre o desejo e sua satisfação imediata; quando o delito é absolvido pelo manto protetor da impunidade, a violência passa a ser um passatempo, um jogo macabro.

É preciso um choque de bom senso. Impõe-se a recuperação da noção da existência de relação entre causa e efeito. O erro, independentemente dos argumentos da psicologia da tolerância, deve ser condenado e punido. Chegou para todos, sobretudo para os que temos uma parcela de responsabilidade na formação da opinião pública, a hora da verdade. É preciso ter a coragem de dar nome aos bois. Caso contrário, a delinqüência enlouquecida será uma trágica rotina. Colheremos, indefesos, o amargo fruto que a nossa omissão ajudou a semear.

 

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Departamento de Comunicação do Instituto Internacional de Ciência Sociais – IICS (www.iics.edu.br) e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia (www.consultoradifranco.com).

E-mail: difranco@iics.org.br

 





 

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